[Tirado do livro
"Luz e Calor", do Pe. Manuel Bernardes]
Não é minha intenção que este volume
cresça nimiamente, e me acho já muito adiante, quando ainda restam doutrinas em
outras matérias não menos importantes que as passadas. Pelo que, mudando de
estilo, reduzirei a documentos breves os que podiam ser discursos mais difusos.
Espero que assim seja mais grato e útil aos leitores, em razão da brevidade e
variedade amigas da natureza humana. Por isso porventura seguiram esta forma de
escrever S. Martinho Dumiense Arcebispo de Braga, S. Diadoco Bispo Foticense,
João Bispo de Carpácia, S. Nilo Abade, S. Hesíquio, S. Isaac Siro, S.
Hiperíquio Presbíteros, S. Simeão Júnior, S. Máximo Mártir Constantinopolitano,
Talássio, Evágrio Monges, S. Marcos Eremita e outros Padres. Dos quais, e de
outros autores espirituais famigerados são excertos pela maior parte os avisos
que aqui damos, omitindo outros, cuja luz por ser muito alta e forte, poderia
ofender os olhos menos puros. Vão distribuídos em seis classes:
§ I - Dos que são mais especulativos ou teóricos
§ II – Algumas outras sentenças notáveis por sua brevidade e substância
§ III – Avisos e documentos práticos que respeitam o trato da alma com
Deus
§ IV – Os que respeitam o trato da alma consigo
§ V – Os que respeitam o trato da alma com os próximos
§ Os que pertencem ao conflito da alma com o tentador
I – Dos que
são mais especulativos ou teóricos.
1. Amar a Deus é grande ofício: só este
basta para nos levar todo o tempo da vida e todas as forças da alma. Por certo
não tem pouco que fazer quem tem a Deus que amar. E assim todas as mais
ocupações e ofícios hão de ser ministros deste.
2. Só duas coisas merecem toda a admiração
da criatura racional: a Bondade de Deus e a malícia do pecado. E uma com outra
se exageram reciprocamente; pois vemos quão facilmente costuma o pecador
agravar a Deus e Deus perdoar ao pecador.
3. Entre Deus e os homens se atravessa um
mar imenso, que são nossos pecados. Porém ninguém desconfie de chegar a
salvamento, porque o Salvador sobre este mar, fez de outro mar ponte para
passar-mos; sobre o mar de nossas culpas, ponte do mar de suas penas; sobre a corrente
de nossas maldades, caminho pleas correntes de seu sangue. Oh Piloto sábio, que
no vosso naufrágio constituístes a nossa salvação; e na tempestade de poucas
horas, a bonança de toda a eternidade!
4. Deixem embora os moços a consideração e
temor da morte para os velhos, se se atrevem a conceder-me, que o vidro que
hoje sai das mãos do Artífice não é tão frágil, como o que saiu há muitos anos.
A hora, que a cada um toca, essa o quebra; e todas podem tocar a todos. Desde
que o primeiro homem quebrou o preceito de Deus, tão sujeita a se quebrar é a
vida de um Abel, como a de um Matusalém.
5. Diz-me, pecador de costume: Acaso
passarás mais seguramente o rio, quando o engrossaram as cheias? Curarás mais
facilmente a febre, quando se apossar das entranhas e se fizer ética? Vencerás
melhor teus inimigos, quando forem mais no número e nas forças? Lançarás fora
do monte a serpente, quando houver vivido nele por muito tempo e souber as
entradas e saídas? Arrancarás ligeiramente a árvore, quando tenha alçado altas
raízes? Pois sabe, que maior engano é cuidares que não querendo tu agora
converter-te a Deus, e arrepender-te de teus pecados, quererás depois e poderás
facilmente.
6. Acaon furtou uma régua de ouro e em
pena perdeu a vida. Queremos sem delito e sem castigo furtar outra mais
preciosa? Tomemo-la a S. Paulo: Domine quid me vis facere: Senhor,
que quereis que faça? Quem regrar por esta régua de ouro todas as suas ações,
palavras e pensamentos, não perderá a paz do coração, nem o tempo da vida, nem
a vida da eternidade.
7. Quatro mães muito formosas parem quatro
filhos muito feios. A verdade pare ódio, a prosperidade orgulho, a
familiaridade desprezo, e a segurança perigo.
8. Ao Pródigo e ao Avarento falta o mesmo
que lhes não falta: porque todos os tesouros da terra e do mar são poucos para
tornar, um a lançá-los no mar outro a escondê-los na terra.
9. Que vão ao inferno Caim pela sua
inveja, Abiraon pela soberba, Zambri pela luxúria, Nabal pela avareza, o Rico
do Evangelho pela gula e regalo, as Virgens loucas pela negligência, não é para
admirar; isto é para admirar, que pelo jejum e Oração, pela esmola, continência
e silêncio, pela pobreza e penitência haja também caminho trilhado para o
inferno. Por este vai a hipocrisia; mas enfim para no mesmo fim, porque
secretamente se comunica e abraça com todos os mais vícios.
10. As obras a que falta a pureza de
intenção reta parecem-se com moeda falsa, ou que tem liga. Pelo cunho correm e
muitos se enganam; pelo metal não têm valor intrínseco. Daqui vem que não
servem para comerciar com Deus, e comprar-lhe o Céus; porque este Senhor não
pode ser enganado.
11. O que é dotado de verdadeira virtude
tem os seus males por fora e os seus bens por dentro. Pelo contrário, o amigo
dá glória vã, o hipócrita, o mundano, os seus males estão por dentro, porque
são verdadeiros; e os seus bens por fora, porque são imaginados e aparentes.
12. Como a rosa entre espinhos, assim a
castidade se defende entre recatos. O recolhimento e modéstia são a casca da
continência; e a fruta sem casca facilmente se corrompe. Verdade disse, quem
disse: Prope se se consequuntur proponi formam, et exponi pudicitiam.
13. Entre todas as virtudes somente a
humildade se ignora a si mesma; como traz os olhos baixos e fitos no abismo no
seu nada, não reflete sobre o seu conhecimento, porque o verdadeiro humilde não
presume que o seja.
14. Da boca de um leão tirou Sansão um favo
de mel; e de um favo de mel tirou Jonatas o perigo de sua morte. Deste modo os
bons sabem tirar dos trabalhos o doce fruto do seu prêmio, e das mesmas culpas
bem choradas a suavidade da clemência Divina. Pelo contrário, os ímpios da
suavidade da clemência Divina fabricam o perigo de sua morte eterna.
15. A melhor coisa deste mundo e do outro é
ser santo. A razão é clara: porque a melhor coisa absolutamente é Deus; e os
que mais participam de Deus, são os que neste mundo vivem em sua graça, e no
outro em sua glória; e estes são os Santos.
16. Dá a tua vontade ao próximo: e dar-te-á
o seu entendimento. Quando se inteirar de que o amas, então lhe persuadirás o
que quiseres. O anzol da razão há-de ir coberto com a isca da caridade.
Caridade é língua universal que entendem até os bárbaros e os mesmos brutos:
fala nesta língua e logo serás bem ouvido.
17. Aceitar com estimação os benefícios,
ainda quando os escusas, e eles são tênues, e o benfeitor os reputa por
grandes, é sinal de condição benigna e humilde.
18. As raízes da concórdia com o próximo
são as semelhanças dos ditames do entendimento e inclinações da vontade. Nas
três Divinas Pessoas onde há suma união, há um só entendimento, uma só vontade,
uma só natureza.
19. Com a tenaz de ouro pegou o Anjo da
brasa do altar; e levando a brasa, levava juntamente o fogo. Não vás a Deus
senão por Cristo; nem a Cristo senão por Maria. Quando não vás, mas és levado,
vai por onde Deus te leva.
20. O ramo que tem muita fruta inclina para
a terra; o que nenhuma, levanta-se para o ar; e dizem que se lhe penduram uma
pedra, então leva fruto. Os servos de Deus, quanto mais e melhor obram em seu
serviço, mais se humilham; e os que nada fazem, mais se ensoberbecem. Mas, para
levarem algum fruto, os carrega Deus com a tribulação e desprezo.
21. No mundo espiritual e interno o Sol é a
Cruz; desta nasce toda a luz da inteligência e todo o fervor do afeto: e se daqui
não nasce, temo que sejam luz e fervor falsos.
22. Os exercícios e penitências que a alma
toma, alguma coisa a purgam: a perseguição dos demônios, mais; a dos próximos,
ainda mais; mas sobretudo Deus com as subtrações de sua graça.
23. Não tens inimigo mais poderoso, mais
astuto, mais emperrado, e mais doméstico, do que é teu amor-próprio. Se queres
errar frequentemente, sentenceia pelo seu voto.
24. Quem pelo discurso humano presume
esquadrinhar os juízos divinos, sonda o mar com uma bóia; e quem ao juízo
divino pretende encobrir os discursos humanos, tapa o Sol com um vidro. Porque
para a profundeza de seus conselhos, toda a nossa consideração é leve; e para
os raios de sua vista, todo o nosso coração é transparente. Vidro chamei ao
coração humano; ainda mal que se lhe parece em muitas propriedades; porque não
só é para os olhos divinos patente, mas também para a impressão de seus avisos
duro, e para os golpes de seu castigo frágil: In flagellis tuis
infirmitas nostra teritur, et iniquitas non mutatur: mens aegra torquetur, et
cervix non flectitur.
25. A mais importante, a mais difícil e a
mais gloriosa empresa que o coração humano pode acometer, é vencer a si
próprio. Dura o combate quanto a vida dura; porém morrer no conflito é o mesmo
que vencer, e as armas na mão são o mesmo troféu.
26. Desconfia de ti, e confia em Deus; que
é o mesmo que não fundar em areia movediça, mas em penha viva; nem defender-te
com escudo de cera, mas de aço. Ou presumas da tua fortaleza, ou desconfies da
bondade de Deus, sempre o desobrigas de socorrer-te.
27. Muito proporcionado modo de alcançar
graças é render graças. Para ali correm as coisas estimáveis, para onde são
estimadas. O agradecimento é aqueduto da liberalidade. Um ingrato pedindo,
apara uma mão à fonte e com a outra a entope.
28. O soberbo é filho do diabo, assim como
o humilde o é de Jesus Cristo. O soberbo parece em certo modo que afeta
negar-se de criatura e constituir-se Deus sobre o altar de seu coração,
incessando-se com os fumos da sua vaidade e sacrificando-se às inferioridades
que considera nos mais: Non sum sicut caeteri homines. O soberbo
esteriliza, quanto em si é, a Divina Misericórdia e renuncia o Espírito Santo.
29. Na maior pobreza está encantado o maior
tesouro. Dos espinhos dos trabalhos rebetam rosas das consolações. O jugo de
Cristo sobre nossos ombros, converte-se em asas. Pela aniquilação se entra a
ser tudo. Abaixando-te tocarás no Céu. Sofrendo se vive à vontade. Quanto mais
atribulado, mais mimoso. Quanto te aborreceres, maior bem te queres. Oh doutrina
altíssima, ensinada enfim pela Sabedoria do Eterno Padre! Oh paradoxos de
verdade Católica e de fruto de vida eterna!
30. Não há modo de mandar ou ensinar mais
forte e suave do que o exemplo: pesuade sem retórica, impele sem violência,
reduz sem porfia, convence sem debate, todas as dúvidas desata, e corta
caladamente todas as desculpas. Pelo contrário, fazer uma coisa e mandar ou
aconselhar outra, é querer endireitar a sombra da vara torcida.
31. Não há coisa mais doce que o Amor de Deus,
nem mais robusta, nem mais sublime, dilatada, aprazível e preciosa no Céu e na
terra. Todas as dificuldades alhana: para todo o peso lhe parece que tem
ombros; envergonha-se da palavra: Não posso; não se queixa, nem
murmura, nem regateia obséquios com o amado; vive, e se conforta de padecer e
trabalhar. Como nasceu de Deus, é generosíssimo, e não afeta o mínimo interesse
próprio. Quem reparar como é ativo, e leve, e amigo de liberdade, e simples, e
sutíl, e penetrativo, e purificador, logo dirá que é da natureza de fogo.
Procura, alma minha, arder neste fogo, e serás bem-aventurada.
32. No Evangelho está escrito que os de
Nazaré levaram a Jesus ao pico de um alto monte, para dali o precipitarem.
Montes são as dignidades: Jesus é a graça e estudo da perfeição espiritual; se
subires a alguma dignidade, olha não precipites dali a Jesus.
33. Verdadeiramente são inexplicáveis os
proveitos que vêm a uma alma das injúrias e tribulações bem levadas. Se o
demônio não destruíra a fazenda de Jó, não lha dobrara Deus; se Saulo não
perseguira a Igreja, a Igreja não fora defendida, honrada e propagada por
Paulo; José foi adorado de seus irmãos, porque de seus irmãos foi vendido. Só o
proveito de nos meterem as tribulações mais com Deus, não tem preço; porque
enfim somos (diz Crisóstomo) como meninos; que quando nos fazem cocos, então
fugimos para a mãe: Ad Deus currimus, sicut pueri, cum larvas
aspiciunt, ad matrem.
34. Os Santos não se diferençam dos
pecadores e imperfeitos em não ser tentados e perseguidos; senão, em que o
pecados e imperfeito com qualquer leve impugnação cai; e o Santo contra a mais
forte se sustenta.
35. Se o homem não tem dentro de si mesmo
pela assistência e manutenção divina tudo o que é necessário para se defender
dos inimigos da alma, nenhum lugar, nem companhia, nem estado, nem outra
qualquer ajuda extrínseca o pode assegurar.
36. Desculpar-me do pecado é agravá-lo;
porque se estou inocente, o silêncio é a melhor prova disso; e se o não estou,
a escusa envolve soberba e mentira. A boca dos ímpios (diz Salomão) tapa a
maldade: Os impiorum operit iniquitatem. E pouco antes tinha dito:
Que a maldade tapa a boca dos ímpios: Os impiorum operit iniquitas.
Como lhes tapa a maldade a boca, se com a boca tapam eles a maldade? É que,
tapando a maldade, a descobrem mais; e então com a desculpa ficam tão
convencidos, que não tem mais que dizer.
37. A memória de Deus é saúde e limpeza da
alma. Parece que a alma não tem o rosto e mãos lavadas enquanto se não
purifica, refresca e aligeira na memória daquele Senhor, que é fonte de toda a
consolação e pureza.
38. O azeite afugente as sevandijas
asquerosas que se criam no leito; e o nome de Jesus os pensamentos torpes que
se criam no ócio: Oleum effusum nomen tuum.
39. Água de lágrimas e fogo de amor
conduzem a alma ao refrigério da união com Deus:Transivimus per ignem, et
aquam, et eduxisti nos in refrigerium.
40. Tribulações tomadas como da mão de
Deus, com submissão e paciência, são a divisa dos Predestinados. A quem Deus
não açouta é sinal que não perfilha (disse S. Agostinho): Si exceptus
es a passione flagellorum, exceptus es a numero filiorum. O lavrador mete
no jugo os bois que reserva para si, e manda pastar os que há de vender para o
talho. De Salomão sabemos que pecou, e sabemos que logrou contínuas
prosperidades; por isso não sabemos se se salvou.
41. Há uma conversação, que é pasto da
alma; e há outra, de que a alma é pasto. Quando falamos com Deus, ou de Deus, a
alma come, porque a devoção se lhe aumenta; porém quando falamos com o mundo,
ou do mundo, a alma é comida e carcomida; porque a devoção se lhe gasta e
consome.
42. O encalmado de amor de Jesus Cristo,
diz das injúrias e calúnias, como se foram fruta colhida pela fresca: Estão
ricas! Não há mais?
43. Se espancas os cães da vinha, pareces
ser também ladrão. Não és tu dos reformados, pois murmuras e intimidas os
zelosos. Mas lá está o Senhor da vinha, a quem darás conta dos frutos, que nem
defendeste, nem deixaste defender.
44. A nossa alma é como a espada; que, se
não passa por fogo e água, isto é, por trabalhos voluntários e involuntários, e
por tentações de prosperidade e adversidade, nunca toma têmpera, com que sem
quebrar, dobre e logo torne a ficar direita.
45. Sem dinheiro não há mercador, ainda que
tenha grande agência, e muita indústria. E sem humildade não há homem
espiritual; por solícito e prudente que seja, não embolsará virtudes.
46. Que maior altura que a de Deus? E para
topar com ele, o remédio é baixar bem a cabeça. Porque tantos a erguem, tão
poucos lhe chegam.
47. A mão bem despegada dos bens terrenos,
não é a que dá esmolas do supérfluo; senão a que não desvia faltas do
necessário.
48. A porta do Céu, diz o Evangelho que é
estreita; o mesmo se pode dizer da anteporta, que é a Oração. Mal podem entrar
por ela espíritos, ou muito inchados de confiança própria, ou muito enfeixados
de cuidados de fazenda, ou muito acompanhados de amor de parentes.
49. Quando à custa de trabalhos e suores
tiveres já domado e obediente teu vil e desprezível corpo, e te vires livre de
suas dependências e cativeiros, e que já se espiritualizou de modo que não
remurmura da fome, sede e trabalhos, então verás, mais claramente que em um espelho,
aparecer no centro da tua alma aquele Senhor, que é sobre toda a capacidade do
nosso conceito. Vê-lo-ás, não obstante ser invisível: e a alma profundamente
chagada de seu doce amor, misturará com o gozo, muitas lágrimas mansas e
suspiros inenarráveis. Neste estado lembra-te de mim: ora por este pecador
vilíssimo, porque sabe que tens chegado à união com Deus, com a qual te deu
juntamente uma tal confiança, que nunca sairás envergonhado de sua presença.
50. Repare-se na indústria com que o Autor
da Natureza criou na espiga cada grão armado com sua aresta por amor das aves
roubadoras. Assim também na Oração nenhum fruto nos concede, que juntamente não
nos dê virtude para o defendermos das tentações.
51. Enquanto não sou capaz de vitupério,
também o não sou de louvor. Porque impossível é, que o louvor me não esvaeça,
se o vitupério me exaspera. E a grimpa que se move para uma parte com este
vento, por que se não moverá para a contrária com o contrário?
52. Está escrito: Lança de casa a escrava
Agar e seu filho Ismael; porque não será herdeiro o filho da escrava com meu
filho Isaac. A escrava é nossa vontade; seu filho é o amor-próprio; Isaac é o
amor divino; a herança o Reino de Deus, que está dentro em nós.
53. Sumamente odiosa aos demônios é a
Oração pura; e o que a faz pura é a concórdia do sentido com o espírito e do
espírito com Deus; porque o inimigo não cobra terror, tanto do exercício
numeroso, quanto do bem formado.
54. Quando todos os próximos te parecem
bons, nem descobres neles coisa que se te represente imunda e contaminada,
então és limpo de coração e por conseguinte poderás ver a Deus. Procede isto de
reinar na alma um especial sentimento e participação da simplicidade Divina,
que não é discursivo, senão que como coluna de nuvem e luz, por uma parte
encobre todas as virtudes próprias e defeitos alheios; por outra, mostra todas
as virtudes alheias e defeitos próprios.
55. Um Santo Padre define a ciência deste
modo: Scientia est se ipsum nescire extra se positum in Deo: É não
saber um de si mesmo, por estar fora de si posto em Deus. Isto se faz na Oração
e contemplação. Por onde só os que a exercitam e logram, são os verdadeiros
sábios.
56. A Sabedoria Divina com uma alma é uma
mãe com o seu menino. Para que o menino pegue no seio, não há diligência que a
mãe não faça: canta, embala, afaga, acaricia e trata-o com todo o mimo e
brandura. Porém tanto que é necessário dar-lhe comida sólida, porque já tem
dentinhos; afasta-o de si e diz-lhe rigorosamente: não, não, isto amarga. O
mesmo usa Deus com os principiantes, consolando-os e mostrando-se amoroso.
Depois que tem pegado na Oração e adquirido alguma firmeza na vontade, seca-se,
e leva-os por tribulações, que é o pão sólido, com que se fazem homens.
57. Onde no mundo grande se ajuntam e
continuam as trevas com a luz (que é na superfície da terra) aí quis Deus que o
mundo pequeno peregrinasse, até que as suas trevas se alumiem, ou pelo contrário,
a sua luz se escureça eternamente. Peça logo a Deus, como David pedia:Quoniam
tu illuminas lucernam meam Domine, Deus meus illumina tenebras meas.
58. Deus, como Criador, é nosso princípio;
como Glorificador é nosso fim; e como Redentor é nosso meio, para conseguirmos
esse fim. Porque nada, que saiu de Deus, pode tornar para Deus, senão pelo
mesmo Deus.
59. Verdadeiro bom Pastor é aquele, que por
tratar melhor do seu aprisco, se fez Cordeiro, se fez pasto, e se fez aprisco:
Cordeiro tomando o nosso corpo na Encarnação; pasto, dando-o no Sacramento;
aprisco, rasgando-o na Cruz para nos recolher e amparar nas suas Chagas.
60. O coração multiplicado pela diversidade
de desejos, nem sabe buscar, nem pode achar aquilo que é um de tudo; isto é, o
bem que por ser sumo, é também simples; e por ser simples quer nosso coração
totalmente um. E esta é a limpeza, a quem o Senhor prometeu sua vista, porque
este é o um necessário que se não descobre, sem escusarmos a multidão supérflua:Turbaris
erga plurima: porro unum est necessarium.
61. De que te jactas, homem vanglorioso? Do
mau, ou do alheio? Tudo o que tens de bem, é mercê alheia; tudo o que tens
próprio, é miséria pura. Escolhe agora, qual destes títulos se faz louvável.
Qualquer dos dois, que assines, sempre te mostras néscio; porque ou desconheces
o Autor do Bem, o a natureza do mal: Unde igitur (diz S. Agostinho)
gloriabitur omnis caro? Nunquid de malo? Haec non est gloria, sed
miseria. Sed nunquid gloriabitur de bono, nunquid de alieno? Tuum, Domine,
est bonum, tua est gloria.
62. As tábuas da Lei, que eram de pedra,
mandou Deus guardar na Arca, que era de ouro; para que entendessem os homens
quanto maior estimação deviam à observância da Lei, do que às riquezas da
terra; e que mais desvelo haviam de ter em guardar os Mandamentos, do que em
guardar os tesouros.
63. O mundo é mar, a ambição é sede. Não me
espanto que o ambicioso se não sacie com os bens do mundo; porque a água
salgada não apaga, antes acende as securas. Impossível é apagar bebendo, a sede
que nasce de beber; e satisfazer possuindo, a cobiça que nasce de possuir.
64. As tribulações dos Santos são enigma:
uma coisa parecem, e outra são e significam; parecem misérias da fortuna e são
conselhos da Providência Divina e sinais da felicidade eterna.
65. O pão sustenta o corpo; a Oração a
alma. Se o corpo anda falto de sustento, com qualquer tropeço ou encontro, cai;
e se a alma anda falta de Oração, com qualquer tentação peca:Aruit cor meum,
quia oblitus sum comedere panem meum.
66. Quando o pecador considera a grande
miséria de seu estado, então começa ela a não ser já tão grande: porque o
princípio de contentar a Deus é descontentar-se de si; e sem tornar em si,
ninguém torna para Deus. Assim nos ensina a parábola Evangélica daquele moço
mal aconselhado e bem arrependido: In se reversus dixit, ibo ad Patrem.
67. Se importou que Cristo padecesse, para
entrar na glória própria, como não importará que tu padeças, para entrar na
sua? No Céu todos são Reis, mas os seus ceptros não se fazem senão de Cruzes.
Decretou Deus fazer Bem-aventurados de miseráveis; tu não hás de ensinar-lhe a
fazer a glória. Se te não serve para ti do modo que a dispôs Deus até para com
seu Filho, faz outra a teu modo, que então serás miserável eternamente.
68. O estado melhor em si, nem sempre é o
melhor para ti. No mesmo terreno pega bem uma planta, e floresce, e frutifica;
e outra murcha ou pasma e seus frutos são desmedrados.
69. Sub umbra dormit in secreto calami, et in locis humentibus. Protegunt
umbrae umbram ejus, et circumdabunt eum salices torrentis.
Neste texto de Job lhe fala ao pé da letra o demônio. O homem é mundo pequeno;
as moléstias com que por divina permissão o demônio persegue ao homem são
várias. O mais, Qui legit intelligat.
70. Vícios da nossa natureza não saram
senão com a graça; porque a graça é participação da natureza de Deus; e só a
natureza daquele que é bom por si pode retificar a natureza daquele que não é
bom senão por Ele. Mas esta graça quer-se muito pedida e solicitada e esperada;
e depois muito agradecida, guardada e empregada. Porque tão raros isto fazem,
por isso tantos morrem com os mesmos vícios com que viveram.
71. A caridade do próximo é a mesma
caridade de Deus quando abunda; assim como a água que trasborda é a mesma que
enche o vaso. Daqui se mostra, que se cuidas que amas muito com verdadeira
caridade o próximo, sem amares ainda muito a Deus, te enganas; porque esse não
é mais que um amor, ou natural, ou político. Vê-lo-ás pela facilidade com que
se desata com qualquer impugnação contrária; o que não sucede, quando era
caridade sobrenatural e de legítimo nascimento de Deus.
72. A mão grosseira e calosa não percebe
distintamente pelo tato as coisas materiais; muito menos se tiver calçada a
luva. Ao nosso espírito sim foi dado sentimento e percepção das coisas
espirituais e divinas; porém, como o temos envolvido e calçado entre tantos
sentimentos grosseiros das coisas terrenas, daqui vem não poder formar notícia
que o afeiçoe e faça sábio das coisas divinas.
73. Muitos ainda dos que aspiram à
perfeição se enganam na eleição do bem, ou declinação do mal, movidos de razões
claras que lhes propõem o seu entendimento, não advertindo que há outras razões
de superior ordem, das quais haviam de fazer regra. Não basta só seguir a razão
em aparecendo; é necessário compará-la primeiro com outra razão e então seguir
a que for maior. E sempre as razões Divinas e eternas e Evangélicas são maiores
que toda a razão humana, temporal e política.
74. Quanto mais te sujeitares, mais sábio
serás. O caminho da humildade e o da luz não são dois, mas um só. Tu não crês
que Deus é Luz e Sabedoria? E que se afasta dos que estribam sobre si mesmos?
Logo como pode ser, que afastando-se Deus de ti, fiques ainda com luz e
sabedoria? O corpo inteiriçado perde a sensibilidade; e se o espírito também se
inteiriçar, também perderá o tato espiritual das verdadeiras verdades.
75. A vida da alma é o amor de Deus; a vida
do amor de Deus, é a Oração pura; a vida da Oração pura é a mortificação
contínua; a vida da mortificação contínua é a resolução generosa.
Resolvamo-nos: de outro modo nunca viveremos ao amor de Deus.
76. Onde não há silêncio, não há muita
Oração; onde não há muita Oração, não há muita virtude. Agora, se entendes que
te é necessária a virtude, entenderás se o silêncio te é necessário.
77. Enquanto não amares os desprezos, as
mofas, detrações e contradições do próximo, não hás de fazer coisa grande; e
tanto que o demônio vir que a intentas, aí tem com que derrubar-te quantas
pedras fores pondo no edifício. Assim como o abanador enxota as moscas, assim
afugenta os soberbos o temor de serem desprezados.
78. Não emendarás a língua, enquanto não
emendares o coração. E porque uma vez emendado o coração somos perfeitos; por
isso disse o Apóstolo S. Tiago: Que quem não tropeçasse na palavra, era varão
perfeito.
79. O demônio é cozinheiro (Nabuzardan
princeps coquorum): se vê que não gostamos do pecado guisado dum modo,
tantos temperinhos lhe busca, até que nos abre a vontade; e se não levamos
todo, contenta-se com que provemos algum bocado.
80. Samuel disse a Saul, quando este lhe
desobedeceu: Que a dureza de juízo era como a idolatria: Quasi peccatum
arilandi est, repugnare: et quasi scelus idolatriae, nolle acquiescere. O
homem aferrado ao seu parecer, em concebendo alguma coisa que intenta, ou
ajuíza, faz ídolo daquele conceito, e o coloca no altar do seu coração, e com
ele consulta o que há de fazer; e as respostas que ouve em si mesmo, essas
segue, e tem como vindas do Céu, sendo que vem do demônio, que fala por aquele
ídolo.
81. Mortificação é crucifixão: e assim como
ninguém pode crucificar a si mesmo de todo, se outro de fora o não crucifica,
assim ninguém se mortifica perfeitamente, se outro não ajuda a isso. Pregará
quando muito os pés com as mãos, e uma mão com a outra; e isso com esperas
muito detençosas, e grande mágoa de si mesmo, mas a outra mão sempre lhe ficará
solta.
82. Quem tem frio, chega para si a roupa; e
quem tem calma, a afasta. Assim, quem tem amor de Deus, logo lhe enfadam as
coisas deste mundo e deseja alongar-se delas. E pelo contrário, quem está frio
neste amor, como não tem consolação por dentro, a busca por fora nas criaturas:
e isto é chegar para si a roupa: Quid enim (disse S. Gregório) sunt terrena
omnia, nisi quaedam corporis indumenta?
83. O Santo Frei Egídio, discípulo do
Seráfico Padre S. Francisco, dava esta doutrina, que é a substância de toda a
vida espiritual. Se queres bem sentir, tira de ti todos os sentidos. Se queres
bem amar, tem ódio a ti mesmo. Se queres bem ganhar, sabe perder. Se queres
viver deliciosamente, aflige-te; se estar seguro, está sempre em temor; se ser
honrado, despreza-te; e honra aos que te desprezam; se ser abençoado, deseja
haver maldições. Oh quão grande sapiência é saber fazer isto! E porque são
grandes coisas, não são concedidas a todos.
84. O demônio parece-se com a
serpente Amphisbaena, que na cauda tem outra cabeça. Porque
consistindo as virtudes no meio, ele morde por ambos os extremos; já nos quer
arrojados, já pusilânimes; ora presumidos, ora desesperados; agora nos puxa
para o silêncio indiscreto e logo para a loquacidade vã; se nos examinamos
devagar, carrega para o escrúpulo; se só de passo, para a relaxação e liberdade
da carne.
85. Se aceitares os conselhos de Cristo,
não sentirás pesada a lei de Deus. Ponhamos exemplo: manda Deus que não
cobiçemos coisa alheia; e aconselha Cristo que não possuamos coisa própria.
Manda Deus que não demos mal por mal; e aconselha Cristo que oremos pelos que
nos perseguem e caluniam. Observa tu, como bom Religioso, estes conselhos; não
quebrarás, como mau secular, estes mandamentos. Toma sobre ti maior carga,
sentirás menor peso. Mais custara aos bois levar a carga, se não levassem
justamente o carro e as rodas; nem a ave pudera levantar o corpo, se não
levantasse juntamente as asas.
86. O demônio, para casar com a alma,
fala-lhe de noite. Porque se a alma vira como é feio, nunca em tal
consentira: Ita se habet peccatum (diz S. João
Crisóstomo); ut priusquam fiat et ad opus perveniat, obtenebret, et
decipiat mentem.
87. Faz com Deus o que podes, Deus fará
contigo o que não podes. A sua graça dá de si, quanto racionalmente puxamos por
ela; e aos esforçados aumenta o esforço: Posui adjutorium in potente.
88. A formosura de qualquer criatura que
vemos é mensageira ou precursora da formosura de seu Criador, que esperamos
ver, como o Batista de Cristo. Serve de nos trazer recados da parte de seu Amor
e novas de seu Poder, Sabedoria e Bondade. Nós, a esta ou aquela criatura, a
queremos levantar por Deus, como os judeus queriam fazer Messias ao Batista.
Porém responde-nos, como ele respondeu: Non sum: Eu não sou Deus,
que é o mesmo ser, sou a que não sou; sivro de voz, que clama neste deserto da
tua peregrinação, que endireites teus caminhos para o Senhor: Ego vox
clamantis in deserto: Dirigite viam Domini.
89. Perguntado o Angélico Doutor S. Tomás
que sinais tinha o homem espiritual perfeito, respondeu que dois: primeiro, se
se abstém de palavras jocosas e ociosas; segundo, se leva bem ser desprezado.
90. O homem que naturalmente é pacato e
manso de coração corre-lhe obrigação de sofrer a seus próximos, que não tiverem
esse dom; assim como o filho a quem seu pai deu o morgado, deixando os mais
irmãos pobres, leva o encargo de os sustentar. E nem aquele deve presumir de
si, nem os outros desconfiar, porque pode o primeiro perder e destruir esse
morgado com vícios; e podem os outros com seu trabalho e diligência granjear
muitas riquezas de virtude.
91. Maior distância vai do obrar ao
padecer; do que do dizer ao obrar. Dos que dizem, muitos obram; dos que já
obraram muitas coisas e se exercitaram em várias virtudes da vida ativa, raros
são os que metidos debaixo da Cruz, puramente ao passivo, saibam levá-la bem. É
porém tão rendoso o campo do padecer; que pouca parte que se aproveite,
enriquece muito a alma.
92. Se alguma coisa obraste, ou disseste
por te vingar de teu irmão, no tempo da Oração o pagarás; porque buscas a um
Senhor, que também do outro é pai; e quando tu só foras seu filho, então devias
mais ensinar-te e repreender-te. A Oração (disse S. Nilo Abade) é mansidão, e
criatura gerada no desabitado da ira: Oratio est mansuetudo, et faetus
ex vacuitate irae procreatus.
93. Os grandes do mundo são escravos da sua
grandeza. Não se podem arrojar, sem levar consigo tantos grilhões e bragas,
quantos pontos de honra e razões de estado. Se descaíssem do estado, ou o
renunciassem, então ficariam forros.
94. Se quebras com teu próximo tanto que
achas ter grande razão para isso, brevemente ficarás só contigo; e contigo
houveras de quebrar primeiro, pois és quem mais te persegue e arrisca. E sobre
a razão, que tu achas grande, há muitas muito maiores, a que deves atender; que
são o amor que deves a Cristo, que ele manda lhe pagues na mão do próximo: o
prêmio do perdão de injúrias e sofrimento de ingratidões; o perdão que tu
desejas de teus pecaods; a quietação da consciência na hora da morte; a
esperança que todos temos de viver unidos em Deus eternamente, etc.
95. Quando os Persas, por morte de el-Rei
Chorroas, restituiram o sagrado lenho da Cruz, ainda vinha fechada na mesma
arca em que a tinham levado, e com o mesmo selo inviolado; sinal de que a não
viram, nem tocaram, nem lhes servira de mais que de destruição do seu império.
Deste modo, se não aproveitam os maus Cristãos dos frutos da Cruz. Os seus
mistérios estão para eles fechados, nem olham mais que para o exterior. Têm fé,
mas metida como numa arca, sem usar dela; e assim, em vez de se salvarem,
perdem-se. Pelo contrário, o varão espiritual sabe abrir os selos da Cruz de
Cristo, conhece seu preço e estima este tesouro.
96. Três sortes de pessoas (diz o V. Beda)
são infelizes na lei de Deus: o que não sabe e não pergunta; o que sabe e não
ensina; o que ensina e não faz.
97. S. Macário disse: Se o Monge tem o
desprezo por louvor, e a pobreza por tesouro, e o jejum por iguaria, nunca
morre. Porque impossível é que o que crê bem em Deus, e o serve pia e
fielmente, caia em paixão imunda, ou engano dos demônios.
98. A vida espiritual ordinariamente consta
de três estaçòes: na primeira edificamos nós; na segunda destrói Deus esse
nosso edifício; na terceira edifica o seu. Na primeira há virtudes imperfeitas;
na segunda virtudes purgando-se; na terceira virtudes já purgadas. Na primeira
consolações sensíveis; na segunda desamparos e tribulações; na terceira,
consolações espirituais e muitos dons e favores de Deus.
99. Uma onça de Oração, feita no meio de
trevas e securas, com o ápice, ou ponta do espírito, vale mais que cem libras
feitas entre consolações e ternuras.
100. Amontoas virtudes, devoções e
exercícios pios, sem primeiro fazer cabedal de humidade? Pois supõem que levas
pó nas palmas das mãos contra os ventos.
101. Conhecer-te por miserável não é logo
ser humilde: é não ser bruto. Se desejas e trabalhas porque te tratem como a
miserável, então tens humildade; porque então tratas contigo verdade.
102. A alma que deseja humildade deve lançar
por primeira pedra deste alicerce; que não merece adquirir a humildade, e que
todas as suas diligências e trabalhos não poderão fazer que a logre, mas
somente a misericórdia de Deus.
103. A Cruz é a porta real para entrar no
templo da Santidade: quem buscar outra, não entrará jamais, nem um passo.
104. Jejuar à minha própria vontade pode ser
pura tentação do diabo. Oh que de jejuadores se hão perdido! Porém de
obedientes, nenhum. O miserável Fariseu jejuava duas vezes na semana, e foi
reprovado; o Publicano não jejuava, e foi justificado.
105. Quem pode exercitar a doçura de
espírito no meio das dores, a generosidade no meio das fraquezas, a paz no meio
das contradições, este é mais que perfeito. A mansidão, a suavidade de coração,
a igualdade de humor, são virtudes mais raras que a castidade; e assim as
devemos ter em grande estimação. Não há coisa que mais edifique, que a mansidão
caritativa; nela, como no azeite da lâmpada, vive e se nutre a chama do bom
exemplo.
106. Há umas fraquezas no doente, que se
remediam tirando sangue; porque não nascem de falta de forças, senão de estarem
agravadas e oprimidas. Assim, a debilitação e quebramento que sentimos para as
obras de Deus, procede de agravação dos apetites, aos quais quanto mais mão
damos, maior fraqueza contraímos. E assim, o remédio é sangrar-nos destes
apetites.
107. Quem mais mortifica suas naturais
inclinações, mais atrai as inspirações sobrenaturais.
108. A palavra revestida de brandura tem
muito mais força e lustre; e revestida de cólera, uma e outra coisa persuade ao
próximo, do que o que se lhe intenta persuadir com modo apaixonado ou
imperioso.
109. Se fores humilde de verdade, acharás
palpavelmente que é impossível fazer-te alguém agravo. Ao nada nunca pode
faltar lugar, e sempre lhe sobra honra; e o prostado em terra, como temerá
cair?
110. A maior segurança que neste mundo
podemos ter de estar em graça de Deus, não consiste nos sentimentos que temos
de seu amor, senão na pura e irrevogável entrega de todo o nosso ser nas suas
mãos, e na determinada e absoluta resolução de não consentir jamais em pecado
algum, grande, nem pequeno.
111. Importa perseverar dentro da barca em
que estamos, para passar o golfo deste mundo e sair no outro. Porque ainda que
muitas vezes nos não pusesse nela a mão de Deus, senão as dos homens, todavia,
uma vez dentro, quer Deus que não saiamos. Mudanças e transmigrações, ainda de
bem para melhor, são arriscadas; não por razão do termo, senão da passagem.
112. Quem quer outra coisa, senão a Cristo,
não sabe o que quer; quem pede outra coisa, senão a Cristo, não sabe o que
pede; e quem obra, senão por amor de Cristo, não sabe o que obra.
113. Foges da Cruz? Encontrarás outra maior.
Quanto melhor estava a Jonas ir por seu pé a Ninive, do que ir no ventre de uma
baleia? Se o povo de Israel não murmurara no deserto, não andara e desandara
por ele quarenta anos: Qui timent pruinam, irruet super eos nix.
114. Mais aborrece a Graça o ócio, do que a
Natureza o vácuo. Por isso tanto que receberes algum favor, prepara-te para a
tentação, ou adversidade; porque quer Deus que negoceies com os talentos.
115. Santa Teresa de Jesus, já depois de
estar no Céu, disse a uma sua filha cá na terra: Os do Céu e os da terra
sejamos uma mesma coisa em pureza; os do Céu gozando, os da terra padecendo;
nós outros adorando a Essência Divina, vós outros o Santíssimo Sacramento.
116. Os sentidos militam contra a Fé;
porquanto o objeto desta respeita os bens futuros, e o daqueles os bens
presentes. E assim tanto que a alma pelos sentido prende e pega dos bens
presentes, despreza, e perde a vontade de sustentar-se na esperança dos bens
futuros. Importa pois grandemente negar violentamente os sentidos, para que a
fé tome forças, e o espírito fechado por uma parte, saia pela outra a buscar o
que na verdade lhe convém.
117. A razão de obrarmos o mal tantas vezes
e tão facilmente, é porque a alma está pronta para isto. E esta prontidão
(entre outras causas) nasce de que a obra precedeu o pensamento consentido, ou
ao menos tratado e revolvido morosamente no interior; e a este pensamento
precedeu a memória simples, ou imaginação do mal. Por onde, enquanto não
consumirmos estas memórias ou imaginações do mal, com a memória de Deus
frequente, e se puder ser, contínua, sempre a alma se achará pronta para o mal.
118. Adverte que a frouxidão e ignávia é a mãe
dos vícios; porque os bens que adquiriste, fará que os percas; e os que te
faltam, fará que os não adquiras.
119. Os que agasalham no seio a recordação
sentida das suas injúrias, e entretanto lhes parece que oram, são semelhantes
aos que enchem o cântaro na fonte e vazam em outro furado.
120. Se a Moisés mandou Deus não chegasse à
Sarça ardendo, sem primeiro se descalçar, como queremos nós chegar na Oração a
Deus, que excede todo o sentido e pensamento, e tratar ali com ele, sem despir
primeiro cuidados terrenos repreensíveis e paixões pertubadoras?
121. Quem sabe afogar a ira, mostra ser
prudente e do número seleto dos que oram.
122. Na Igreja primitiva os Cálices eram de
pau, mas os Sacerdotes de ouro; agora os Cálices são de ouro, mas muitos
Sacerdotes são de pau.
123. Repara bem, que te deixará o demônio
jejuar a pão e água, e cingir-te de cilícios, e carregar-te de disciplinas, e
visitar Igrejas e Santuários, e comungar muitas vezes, contanto que não faças
Oração Mental. Pelo que é comum sentir dos Santos Padres, que nenhum exercício
pio aborrece tanto como este; porque por ele entra o homem em si, e abre os
olhos, e lhe aproveitam muito mais todos os outros.
124. Quando o demônio, depois de aplicar
todas suas artes e máquinas, não pode todavia impedir a Oração da alma
diligente, então dissimula um pouco e finge retirar-se; e de súbito revolta
sobre ela, vingando-se em acendê-la em alguma paixão de ira, com que lhe
dissipa a boa têmpera de espírito que tinha adquirido pela Oração; ou a faz
cair em alguma imundície das em que nos parecemos com os brutos, para injuriar
a semelhança que pela Oração tínhamos com os Anjos.
125. Mais estima Deus a alma determinada a
receber por seu amor todo gênero de interior desamparo e qualquer trabalho que
lhe venha, do que se tivera muitas meditações e visitas espirituais, quantas
ela possa receber.
126. Disse o Divino Esposo que a Alma Santa
o ferira com um cabelo do seu pescoço: In uno crine colli tui:
porque mais agrada a Deus o menor ato de sujeição e obediência, do que grandes
obras em que o possamos servir.
127. O nosso Anjo nem sempre nos move o
apetite a obrar, ainda que nos ilumine o entendimento para obrar. E assim não
nos prometamos a suavidade sensível, quando basta a razão ilustrada; nem
cuidemos que por nos faltar aquela, esta vai errada e a obra não é de Deus.
128. Se purgares a alma de paixões e
apetites, que lhe são peregrinos, compreenderás espiritualmente as coisas, e se
negares de ti o apetite acerca delas, perceberás a verdade que em si tem,
conhecendo decerto o que há em cada uma.
129. Que sabe quem não sabe padecer por amor
de Cristo? Quando se trata de trabalhos, quanto mais grave e maiores são, tanto
melhor é a sorte que os padece.
130. Não consiste a perfeição nas virtudes
que um em si conhece, senão naquelas que Deus aprova; e sendo isto tão oculto
aos olhos do homem, nada tem de que presuma e muito de que sempre tema.
131. Procura chegar a estado, que todas as
coisas para ti sejam de pouca ou nenhuma importância, nem tu para elas; para
que, esquecido de todas, estejas com teu Deus no secreto do teu retiro.
132. Oh quanto nos importa ser solícitos e
contínuos na Oração! Porque se não é mediante a graça de Nosso Senhor,
impossível é ao homem crucificar sua carne; e muito mais impossível a
mortificação interior e abnegação de si mesmo e o exercício das virtudes; por
serem coisas muito sobre a nossa natureza.
133. Da conformidade e união da nossa
vontade com a Divina, nasce na alma uma contínua alegria em todos tempos e
sucessos; que então é pura e limpa, e segura do amor próprio.
134. A nossa vileza própria descende destes
quatro costados: Nada, Pecado, Morte e Inferno. Nada que fomos antes de nos
criar Deus; e nada que podemos sem Deus, para obrar assim natural, como
sobrenaturalmente. Pecado que incorremos em nosso primeiro Pai; e pecado que
cometemos por nossa vontade própria. Morte de que temos contraído a dívida
antes de nascermos; e morte, que pagaremos certamente, incertos do quando,
onde, e como. Inferno, que temos justamente merecido, e não sabemos se hoje
cairemos nele, para não sair eternamente.
135. Eu te advirto (disse a Virgem
Santíssima Senhor Nossa falando com sua serva) que não há exercício mais
proveitoso e útil para a alma que o do padecer; porque dá luz, desengana e o
leva a Deus, e Sua Majestade lhe sai ao encontro, porque está como atribulado,
e o livra e ampara.
136. Linguagem da terra é falar bem de si,
mal de outros, e nunca de Deus; linguagem do Céu é falar mal de si, bem dos
outros, e sempre de Deus ou para Deus.
137. Deus se descobre a quem humildemente se
encobre; e Deus se encobre a quem vãmente se descobre.
138. As ânsias de receber favores de Deus,
pondo o cuidado no interesse, inabilitam para os receber; porque são indícios
de pouca humildade, e pouca pureza de intenção, e entibiam o cuidado de obrar,
pondo-o demasiadamente no receber.
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