sexta-feira, 25 de abril de 2014

A CARIDADE FRATERNA – Parte III


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu

A Prática da Caridade Fraterna e os Cuidados da Providência

Santa Catarina de Sena adverte continuamente no Diálogo que a Providência nos deu a cada um, qualidades muito diferentes para que nos ajudemos mutuamente e tenhamos ocasião de praticar a caridade fraterna. Não faltam, por outra parte, ocasiões de faltar a ela, mesmo em ambientes muito cristãos, nos quais, junto a virtudes admiráveis se manifestam verdadeiras enfermidades morais. E mesmo suprimindo todos os defeitos, não faltam motivos de choque e de atritos pela variedade de temperamentos, de caracteres e de aptidões intelectuais que orientam um para a ciência especulativa, outro para a técnica, este para a síntese, aquele à análise. Outras vezes se originam as dissenções porque há quem se compraz em dividir para estorvar a obra de Deus, para impedir, sobretudo, as obras mais elevadas, mais divinas e mais belas. Somente no céu desaparecerá todo motivo de conflito, porque lá, todos os bem-aventurados, à luz divina, veem no Verbo quanto devem desejar e querer.

No meio de todo este cúmulo de dificuldades, como se há de praticar a caridade fraterna? De duas maneiras: primeiro pela benevolência, considerando o próximo à luz da fé, para descobrir nele a vida da graça ou ao menos as aspirações à esta vida; depois pela beneficência, servindo ao próximo, suportando os defeitos dos demais, pagando o mal com o bem, evitando a inveja e pedindo continuamente a Deus a união dos espíritos e dos corações.

Primeiro a benevolência. Temos que ter olhos puros e atentos para ver no próximo, as vezes sob aparência rude e sombria, a vida divina ou as aspirações latentes dela, fruto das graças atuais que todos os homens, um dia ou outro recebem. Para ver assim a alma do próximo, deve haver uma desapegar-se de si mesmo. O que muitas vezes nos impacienta e irrita no próximo não são as faltas graves aos olhos de Deus, mas os defeitos de temperamento ou as inclinações do caráter, compatíveis com a virtude real. Suportamos com maior facilidade a pecadores muito afastados de Deus, porém de condição amável, que a certas almas que, mesmo sendo virtuosas, põem as vezes a prova a nossa paciência. Devemos, pois, considerar à luz da fé aqueles com quem convivemos, para descobrir neles o que agrada a Deus e amá-los com Ele os ama.

Agora, é muito oposto à benevolência o juízo temerário, que não é uma simples impressão a respeito do próximo, mas que consiste em afirmar o mal por leves indícios. Veem-se dois, mas se diz que são quatro, geralmente por orgulho. Quando o juízo é plenamente deliberado e consentido em matéria grave, é falta contra a caridade e a justiça. Contra a justiça porque o próximo tem direito a sua boa fama, que, depois do direito de cumprir com o dever é um dos mais sagrados, muito mais que o direito de propriedade. Pessoas que jamais roubariam vinte francos, roubam ao próximo a reputação com juízos temerários sem fundamento algum. A maioria das vezes o juízo temerário é falso; como é possível julgar com verdade as intenções íntimas de uma pessoa cuja dúvida, erros, dificuldades, tentações, bons desejos e arrependimentos ignoramos? E mesmo o juízo temerário seja verdadeiro, sempre é falta contra a justiça, porque ao emiti-lo, se arroga a jurisdição que não o corresponde: só Deus pode julgar as intenções dos corações, enquanto não são suficientemente manifestas.

É também falta contra a caridade, por vir de espírito malévolo, que só a cor de benevolência deixa escapar alguns elogios superficiais, que terminam sempre com um mais característico. Em lugar de considerar o próximo como irmão, se vê nele um adversário ou rival à quem é preciso combater. Por São Mateus nos diz Nosso Senhor: “Não julgueis para não serdes julgados. Porque com o mesmo juízo que julgardes sereis julgado, e com a mesma medida que medirdes sereis medidos. Mas tu, como te pões a olhar a palha que está no olho de teu irmão e não repara a trave que está em teu olho?” (Mt., 7,1).

Porém, se o mal é evidente, nos manda Deus, por ventura, que nos enganemos? Não, mas proíbe-nos murmurar com orgulho; as vezes nos impõem, em nome da caridade, a correção fraterna realizada com benevolência, humildade, doçura e discrição; e se é impossível ou inútil a correção fraterna particular, se deve pedir, as vezes humildemente, ao superior encarregado de velar pelo bem comum. Finalmente, como diz Santa Catarina de Sena, quando o mal é evidente, o mais perfeito seria não murmurar, mas compadecer-nos e carregar nós mesmo com o mal diante de Deus, ao menos em parte, a exemplo de Nosso Senhor que carregou todas as nossas faltas e nos disse: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo., 13,34). Está é uma das maravilhas do plano da divina Providência. Para não cair, pois, nos juízos temerários, acostumemo-nos a olhar o próximo à luz da fé.

Devemos também ama-lo com atos, eficaz e na prática com amor de caridade benévola e benéfica. De que maneira? Fazendo favores sempre que nos pedir e nos seja possível. Suportando seus defeitos, que é uma maneira de fazer favor e de conseguir pouco a pouco sua correção. Lembremos que a este propósito que não são as faltas graves o que mais nos impacienta no próximo, mas certos defeitos de temperamento, como nervosismo, que faz ser brusco ao fechar a porta, a estreiteza de juízo, a falta de oportunidade, a mania de presumir e outros defeitos semelhantes. Sejamos tolerantes uns com os outros, sem irritar-nos por um mal permitido por Deus para humilhar a uns e provar outros; não degenere nosso zelo em dureza e ao queixar-nos de alguém, não creiamos ter realizado um ideal. Não façamos a oração do fariseu.

Saibamos dizer uma palavra boa no momento oportuno; este é o meio que a Providência põe em nossas mãos para ajudar-nos mutuamente. Um religioso cheio de dificuldades se reanima com uma simples palavra do superior que o deseja muitos consolos no desempenho do ministério e também tribulações que o sirvam de purgatório nesta terra.

A fim de que nosso amor ao próximo seja efetivo, deve-se evitar a inveja, para o qual, como o adverte Bossuet, devemos alegrar-nos santamente das qualidades que Deus dispensou aos demais e que não resplandecem em nós. O mesmo cabe dizer da distribuição do trabalho e dos ofícios eclesiásticos, que contribuem para o esplendor da Igreja e das Comunidades Religiosos. Como diz São Paulo, a mão, longe de invejar o olho, se aproveita da luz que deste recebe; assim também, longe de invejarmos uns aos outros, alegremo-nos das qualidades que vemos no próximo; são também nossas, por sermos todos membros de um mesmo corpo místico, no qual tudo deve concorrer à glória de Deus e à salvação eterna das almas.

Não só temos que tolerar-nos e evitar a inveja como também é preciso pagar o mal com o bem por meio da oração, do bom exemplo e da ajuda mútua. Conta-se de Santa Teresa que um dos meios de conquistar sua amizade era ocasiona-la desgostos. A Santa praticava o conselho de Nosso Senhor: “Se alguém quer tirar-lhe a túnica, dá-lhe também o manto.” É particularmente eficaz a oração pelo próximo no momento mesmo em que nos está fazendo sofrer de alguma forma, como foi a oração de Santo Estevão Protomártir por seus carrascos e a de São Pedro de Verona, mártir, por quem lhe deu a morte.

Finalmente, para praticar devidamente a caridade fraterna devemos pedir continuamente a união dos espíritos e dos corações. Na Igreja nascente dos primeiros cristãos formavam “um só coração e uma só alma”, e deles se dizia: “Vejam como se amam”; e o disse Nosso Senhor: “Nisso conhecerão que são meus discípulos.” Toda família cristã e toda família religiosa deve ser, à luz da fé, uma cópia da íntima união dos cristãos da Igreja nascente. Desta maneira seguirá se cumprindo a oração de Jesus Cristo: “Não rogo somente por estes (os apóstolos) mas também por aqueles que creram em Mim por meio de sua pregação, para que todos sejam um; e como Tu, ó Pai, estás em Mim, e Eu em Ti, assim sejam eles uma mesma coisa em Nós, para que o mundo creia que Tu me enviaste. Eu os dei a glória que Tu Me deste, para que sejam um, como Nós somos um.” (Jo., 17,20).

Assim se realiza de maneira forte e suave o plano providencial, assim se ajudam mutuamente os homens para caminhar para vida eterna. E aqui descobrimos uma prova da origem divina do Cristianismo; porque o mundo, que edifica sobre o egoísmo, sobre o amor próprio e os interesses que dividem, não pode produzir esta caridade; as associações mundanas não tardam a dissolver-se, porque nas palavras bonitas de solidariedade e fraternidade se ocultam muitas invejas e ódios profundos.

Somente o Salvador pode libertar-nos, que para isso veio ao mundo. “Qui propter nos homines et propter nostram salutem descendit de coelis... et homo factus est.”

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A CARIDADE FRATERNA – Parte II


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu


Qual é o objeto secundário da caridade?

Nos diz o segundo mandamento da Lei: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo por amor a Deus.” O objeto secundário da caridade somos, antes de tudo, nós mesmos, devemos nos amar santamente, desejando nossa salvação para glorificar eternamente a Deus; o é, em segundo lugar o próximo, a quem por amor a Deus temos que amar como a nós mesmos, desejando-lhe a salvação e os meios que conduzem a ela, afim de que juntamente conosco glorifique eternamente a Deus. Nosso Senhor nos apresenta o amor ao próximo como consequência necessária, irradiação e sinal certo do amor de Deus: “Nisto conhecerão que são meus discípulos, se tiveres amor uns aos outros” (Jo 13,35). E diz em outro lugar São João: “Se alguém diz: amo a Deus; porém aborrece seu irmão é um mentiroso” (I Jo 4,20).

A caridade fraterna, como se vê, difere infinitamente da inclinação natural que nos move a fazer o bem ao próximo para o agradar, ou nos leva a amar os benfeitores, a aborrecer aos que nos fazem mal e a ser indiferente com os demais. O amor natural nos faz nos faz amar o próximo por suas boas qualidades naturais e pelos benefícios que dele recebemos. Porém o motivo da caridade é muito distinto; a prova disto é que devemos “amar mesmo nossos inimigos, fazer o bem aos que nos aborrecem e orar pelos que nos perseguem” (Lc. 6, 27-35).

A caridade é também superior à Justiça, não somente a comutativa e a distributiva, mas também à justiça legal e à equidade, que nos mandam respeitar os direitos do próximo por amor ao bem comum da sociedade.

A caridade nos faz amar a nosso próximo e mesmo nossos inimigos, por amor a Deus com o mesmo amor sobrenatural e teologal com que amamos a Deus.

Porém, como é possível amar com amor divino aos homens, que em geral, são imperfeitos e mesmo malvados?

A Teologia responde com um exemplo muito simples que comenta Santo Tomás desta maneira: “O que muito ama seu amigo, ama com o mesmo amor aos filhos deste amigo; os ama porque ama a seu pai, e em consideração a seu pai lhes deseja todo bem; se necessário fosse, iria em socorro deles por amor a seu pai e mesmo perdoaria suas ofensas. Se os homens, pois, são filhos de Deus, ou ao menos são chamados a sê-lo, devemos amar a todos, mesmo nossos inimigos, e ama-los na medida com que amamos nosso Pai comum” (1).

Para amar desta maneira a sobrenatural a nosso próximo, preciso é contemplá-lo com os olhos da fé, dizendo: esta pessoa de temperamento e de carácter opostos aos meus, “não nasceu somente da vontade da carne e do sangue ou da vontade do homem”; como eu, “nasceu de Deus” ou foi chamada a nascer de Deus, a participar da mesma vida divina, da mesma bem-aventurança. Com estes olhos devem olhar-se todos os membros de uma mesma família; e não somente estes, mas também os da mesma associação e da mesma pátria, e muito mais aos da Igreja inteira, que sem desconhecer a natural e necessária variedade de pátrias, as compreende todas para dar entrada a todos seus membros no Reino de Deus.

E assim, podemos e devemos dizer das almas com quem vivemos e mesmo daquelas que naturalmente nos são antipáticas: Esta alma, mesmo quando não estiver em graça de Deus é certamente chamada a estar ou a tornar-se filha de Deus, templo do Espírito Santo, membro do corpo místico de Cristo; quem sabe este esteja mais próximo que eu do Coração de Nosso Senhor e seja uma pedra viva trabalhada mais que muitas outras pela mão de Deus, para ocupar um lugar na Jerusalém Celeste.
Como, pois, não ama-la, se amo a Deus de verdade? E, se não amo esta pessoa, se não desejo seu bem e sua salvação, meu amor a Deus é uma mentira. Se, pelo contrário, a amo, não obstante a diferença de temperamento, de caráter e de educação, é sinal que amo a Deus. Posso realmente amar esta pessoa com o mesmo amor essencialmente sobrenatural e teologal com que amo as Três Pessoas divinas; porque nela amo a participação da vida íntima de Deus que já recebeu ou está destinada a receber, amo a realização da ideia divina que dirige seu destino e a glória que é chamada a dar a Deus.

Objetam os incrédulos: porém, é isso realmente amar o homem? Não é melhor amar no homem somente a Deus e a Cristo, como se admira um diamante em seu precioso cofre?

O homem queria que o amassem por si mesmo; mas não é esse título para exigir o amor divino. Para reagir contra tão egoísta tendência dizia Pascal com frase intencionalmente paradoxal: “Não quero que me amem.”
Realmente a caridade não ama somente a Deus no homem, senão o homem em Deus e o homem por Deus.  Porque a caridade o que deve ser o homem, parte imperecedoura do Corpo Místico de Cristo, e faz tudo que está a seu poder para que consiga alcançar o céu. A caridade ama mesmo o que o homem é por graça e, se não tem a graça, ama nele a natureza, não decaída, lastimada e hostil à graça, mas porque é capaz de recebe-la.

A caridade ama o homem mesmo, porém por Deus, para a glória que é chamado a tributar-lhe, que consiste na manifestação esplêndida da Bondade divina.

Tal é a essência do amor ao próximo ou da caridade fraterna: extensão de nosso amor de Deus a todos que são por Ele amados.

***
Daqui nascem as propriedades da caridade fraterna. Segundo ficou dito, deve ser universal, sem fronteiras. Não pode excluir ninguém, nem na terra, nem no purgatório, nem no céu. Somente se detém ante o inferno. Só se exclui os condenados que não são capazes de chegar a serem filhos de Deus e não há neles a menos chance de ressurgir; o orgulho e o ódio os impedem de sequer pensar em pedir perdão. Porém, fora do caso certo da condenação de uma alma, quem pode estar certo disso? A caridade se estende a todos, sem outros limites que do amor do Coração mesmo de Deus.

Resplandece aqui uma grandeza incomparável, que tanto mais ressalta, quanto mais divididas, humanamente falando, estão as almas, como aconteceu na guerra passada, quando um soldado alemão terminava a Ave Maria que a morte tinha deixado incompleta nos lábios de um soldado francês. Nosso Senhor e a Virgem Santíssima uniam aqueles dois irmãos, embora suas respectivas nações continuavam profundamente divididas. Este é o grande triunfo da caridade.

Para ser universal, não necessita a caridade ser igual para com todos; porque a caridade respeita e eleva a ordem ditada pela natureza. Devemos amar primeiro e sobretudo a Deus, mais que a nós mesmos, pelo menos com amor de estima (appretiative); e, se bem que, nem sempre sentimos esse fervor sensível do coração para com Ele, ao menos a intensidade deste amor deve ir constantemente em aumento. Logo, temos que amar nossa alma para glorificar eternamente a Deus, depois ao próximo e, finalmente, nosso corpo, dispostos sempre a sacrifica-lo pela salvação de uma alma, sobretudo quando é obrigação nossa fazê-lo. No que toca ao próximo, temos que amar primeiro os melhores, os que estão mais próximos de Deus, e também aqueles que estão mais próximos de nós pelo sangue, a afinidade, a vocação ou a amizade. Quando mais próxima de Deus está uma alma, mais merece nosso carinho. Quando mais próxima de nós está, mais íntimo é nosso amor por ela e mais completa deve ser nossa abnegação no que se refere à família, a pátria, a vocação e a amizade (2). Donde que a caridade não destrói o patriotismo, mas o eleva, como aconteceu com Santa Joana Darc e São Luís
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Tal é a ordem da caridade: Deus quer reinar em nosso coração, mas sem excluir carinho algum que seja compatível ao Seu; antes o eleva, o vivifica e o faz mais nobre e mais generoso. Mesmo aos inimigos da Igreja devemos amar, rogando por eles; porém seria transtornar a ordem da caridade, com o pretexto de misericórdia, amar mais aos inimigos da Igreja que alguns de seus filhos que trabalham ao nosso lado.

Finalmente, a caridade fraterna, como o amor de Deus, não deve ser só afetiva, mas também efetiva e ativa, não somente benévola, mas também benfeitora. No lo disse Nosso Senhor: “Amai vos como eu vos tenho amado”; Ele nos amou até a morte de Cruz; os santos o imitaram fazendo de sua vida um ato contínuo de caridade transbordante, fonte de paz e santa alegria.

Tal é a caridade fraterna, extensão ou prolongação de nosso amor a Deus.

Continua...

Notas:
      (1)       – Santo Tomás, IIa – IIae, as duas grandes questões 25 e 26 sobre a extensão e a ordem da caridade. As resumimos nas páginas seguintes do texto.
      (2)       – Santo Tomás, IIa – IIae, q. 26, a.8.

terça-feira, 15 de abril de 2014

A CARIDADE FRATERNA – I parte


Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
La Providence et la Confiance en Dieu


Sempre é de sumo interesse o tema da caridade, e convém insistir continuamente nele, sobretudo em nossa época, quando a caridade fraterna é negada por todo gênero de individualismos, e completamente falseada pelo humanitarismo dos comunistas e internacionalistas.

O individualismo põe o olhar somente no bem útil e deleitável do indivíduo, ou, no máximo, do grupo relativamente reduzido a que pertence o indivíduo. Daí procede a violência da luta, as vezes entre membros da mesma família, porém sobretudo entre as classes e os povos. Daí a rivalidade, a inveja, a discórdia, o ódio, as dissenções mais profundas. O individualismo desconhece o bem comum em seus diversos graus e insiste quase exclusivamente nos direitos individuais ou particulares.

Pelo contrário, o humanitarismo dos comunistas e internacionalistas afirma de tal maneira os direitos da humanidade em geral, mais ou menos identificada com Deus, de forma panteísta, que desaparecem os direitos do individuo, da família e dos povos; e, com o pretexto de unidade, de harmonia e de paz, se prepara uma confusão espantosa e uma desordem sem precedentes, como vemos na Rússia desde a revolução. Pretender que todas as partes de um organismo sejam tão perfeitas como a cabeça, ou suprimir esta porque é mais perfeita que os membros, é destruir o organismo inteiro.

É evidente que a verdade se encontra entre estes dois erros extremos e acima deles. Colocada a igual distancia do individualismo e do comunismo, afirma a verdade os direitos do indivíduo, da família e dos povos, como também as exigências do bem comum, superior a todo bem particular. O conceito justo das coisas salvaguarda o bem individual mediante a justiça comutativa, que regula as transações entre os particulares, e mediante a justiça distributiva, que reparte equitativamente os bens e os cargos; salvaguarda também o bem comum por meio da justiça legal, que dita e faz cumprir as leis justas, e por meio da equidade, que se rege pelo espírito das leis em circunstancias excepcionais em que a letra fica inaplicável.

Estas quatro espécies de justiça, admiravelmente assinaladas por Aristóteles e explicadas por Santo Tomás em seu tratado de Justitia (IIa – IIae, q. 58, 61, 120), bastam em certo sentido para guardar o justo meio entre os erros contrários ao individualismo e do comunismo humanitário. Não é, por certo, bastante conhecida a doutrina de Santo Tomás sobre a justiça; poderia ser objeto de muito interessantes e úteis trabalhos.

Porém, estas quatro classes de justiça: comutativa, distributiva, legal ou social e equitativa, por muito perfeitas que sejam, mesmo esclarecidas pela fé, nunca poderão chegar à perfeição da caridade ou amor de Deus e do próximo, cujo objeto formal é incomparavelmente superior.

Examinemos primeiro qual seja o objeto primário da caridade e qual o secundário. Vejamos em seguida como há de exercer e como por meio dela se cumpre o plano da Providência.

***

Qual é o objeto primário e o motivo formal da caridade.

O objeto primário da caridade está muito acima do bem do indivíduo, da família, da pátria e mesmo da humanidade. Devemos amar a Deus sobre todas as coisas, mais que a nós mesmos, por ser infinitamente melhor que nós. É o primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente” (Lc., 10, 27).

Este preceito supremo, ao que estão subordinados todos os demais preceitos e conselhos, é de ordem sobrenatural; porém está conforme também com a inclinação natural, mais ainda, com a inclinação primordial de nossa natureza e, em certo modo, de toda a natureza criada.

Verdade é que existe e nós o instinto de conservação individual, como também o de conservação da espécie, e uma inclinação que nos leva a defender nossa família e nossa pátria, e a amar também nossos semelhantes; porém, é todavia mais profunda, como demonstra Santo Tomás (Ia, q. 60, a. 5), a inclinação de nossa natureza a amar a Deus, que nos criou, mas que a nós mesmos. – Por quê? Porque o que de sua mesma natureza pertence a outro, como a parte ao todo, a mão ao corpo, está naturalmente inclinado a amar esse outro mais que a si mesmo. Por isto se sacrifica a mão de um modo espontâneo para salvar o corpo. Agora bem, toda criatura, em tudo quanto é, depende necessariamente de Deus, criador e conservador de nosso ser; e por conseguinte, toda criatura está naturalmente inclinada a amar o Criador mais que a si mesma.

E assim, a lei de coesão do universo e buscando o bem do mesmo, que é a manifestação da bondade de Deus; e a galinha, como disse Nosso Senhor, recolhe seus pintinhos debaixo das asas, para defendê-los do gavião, e sacrifica, si é preciso, a própria vida pelo bem da espécie, que faz parte do bem universal.
Esta inclinação primordial da natureza está no homem e no anjo iluminada pela luz da inteligência e nos move de uma maneira mais ou menos consciente a amar a Deus, autor de nossa natureza, mais que a nós mesmos.
É indubitável que o pecado original debilitou essa inclinação natural, porém, apesar disso, subsiste em nós a vontade, faculdade intelectual imperecedoura.

Esta mesma inclinação natural foi elevada pela virtude sobrenatural ou infusa da caridade, que é de ordem infinitamente superior à natureza humana e mesmo a angélica. À luz da fé infusa, a caridade nos faz amar a Deus mais que a nós mesmos e sobre todas as coisas, não só como autor de nossa natureza, senão também como autor da graça; nos faz amar a Deus “que primeiro amou a nós” dando-nos a existência, a vida, a inteligência, e o que é maior, a graça santificante, princípio de vida eterna, gérmen cuja plena floração será a visão imediata da essência divina e do amor sobrenatural e santíssimo que não poderá destruir nem diminuir.
Tal é o objeto primário da caridade: Deus, que nos amou primeiro e nos fez partícipes de sua vida íntima. Donde a caridade é a amizade entre Deus e o homem.

O motivo formal de nossa caridade é ser Deus infinitamente bom em si mesmo, infinitamente melhor que nós mesmos e seus dons.

Se não meditamos continuamente este objeto primeiro e no motivo formal da caridade, não poderemos entender como sé tenha que amar o objeto secundário.

Realmente não há duas virtudes de caridade, uma que se refere a Deus e outra que se refere ao próximo. É uma mesma e única virtude teologal, princípio destes dois amores essencialmente subordinados.

Nada pode querer a caridade senão em relação a Deus mesmo, por amor de Deus; como nada pode ver a vista senão por meio da cor e com relação a ele, nem o ouvido perceber o som e o que é sonoro. Mas por amor a Deus devemos amar tudo o que com Ele se relaciona.

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(Continua...)


segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sermão da quinta feira da Paixão - Pe. Cardozo fala sobre a pena de morte.

Prezados amigos,

Salve Maria!

Abaixo o sermão da quinta feira da Paixão e a transcrição do mesmo, proferido pelo Pe. Ernesto Cardozo, em Betim/MG, onde trata como tema principal a legitimidade da pena de morte.


Fiquem com Deus.

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Transcrição:

“Esta bela passagem do perdão da Madalena, nos lembra esta frase tão bonita que diz: Lhe são perdoado muito porque tem amado muito, mas atenção porque não falta os prontos modernistas que dizem lhe tem amado muito por conta das relações apaixonadas que tiveram. Isso não é amor, é paixão. Amou muito porque demonstrou. Amou aos pés de Jesus. Chorando seus pecados e enxugando-os com os seus perfumes e suas lágrimas. Neste ato está mostrando o amor que teve por Deus e arrependimento dos seus pecados. Lhe tem perdoado muito porque tem amado muito. 

Dias passados tivemos uma conversa muito interessante, umas semanas atrás estava no México, e como vocês sabem, México é um pais um pouquinho (...) e tem pessoas no México que tem pedido, por exemplo, a pena de morte para os seqüestradores, porque seqüestram crianças, torturam crianças, as meninas e torturam-nas. Então se discutiu se a pena de morte é uma coisa lícita. E alguns disseram: ‘Não” Não pode ser uma coisa lícita porque vai contra o V Mandamento: Não matarás’. Então eu queria dizer-lhes uma coisa: No Antigo Testamento, quanto fala sobre o V Mandamento diz: ‘Não matarás o justo’. Inclusive, no Antigo Testamento, Deus manda a pena de morte para alguns casos, por exemplo, um filho que insultasse seus pais estava condenado a pena de morte. Vejam isso, um filho que amaldiçoasse os seus pais era condenado a pena de morte. Enfim, e dentre tantos casos, em caso de adultério também. É lícito ou não é lícito? Clarividente que sim! Ou seja, a Igreja sempre permitiu com base na Tradição; já no Antigo Testamento era permitido, e no Novo Testamento também, desde que se cumpra os limites [requisitos] que se trata de estar certo o máximo possível a certeza da culpabilidade. Uma vez estava dando uma palestra sobre os Santos Incorruptos, em Madrid, e havia entre as pessoas que estava ouvido a palestra, um General da Legião Estrangeira Espanhola e quando acabou a palestra, o General da Legião Estrangeira me disse: ‘Padre, quando for a Córdova, na Espanha, trate de falar com o Major Fulano de Tal, ele te vai contar um caso muito interessante. E assim arranjamos, passei por Córdova, fui a um bairro onde se encontravam os Legionários já reformados, e pedi para falar com um dos que estavam ai, um dos alto graus dos Legionários e ele me contou esta história, que vem ao caso:


quarta-feira, 9 de abril de 2014

A MORTIFICAÇÃO - II

Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
Les Trois Ages de la Vie Intérieure

A Mortificação Segundo o Evangelho

Para compreender bem, em oposição aos dois erros extremos que acabamos de falar, qual é o verdadeiro espírito da mortificação cristã, é preciso que olhemos o que dela nos diz Nosso Senhor no Santo Evangelho e como a compreenderam e viveram os santos.

Não veio Nosso Salvador à Terra para realizar obra humana de filantropia, senão uma divina obra de caridade; e a cumpriu falando aos homens mais de seus deveres que de seus direitos, recordando-lhes a necessidade de morrer totalmente ao pecado para fazerem-se dignos de receber abundantemente uma nova vida, e quis dar-lhes provas de seu amor até morrer na Cruz para resgatá-los. Estes dois aspectos de morte ao pecado e vida superior vão sempre mencionado juntos, com uma nota dominante, que é o amor de Deus. Nada parecido se encontra nos erros antes citados.

Qual é a doutrina de Nosso Senhor com relação a mortificação? Em São Lucas, IX, 23 diz: “Se alguém quer vir após, negue-se a si mesmo e tome sua cruz, todos os dias e segue-me. Porque o que quiser salvar sua vida (1), a perderá; e ao contrário, o que perder sua vida por amor de mim, a salvará (2). Que adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se perde a si mesmo?”

Jesus, no Sermão da Montanha, nos ensina a necessidade de mortificação, ou seja, da morte ao pecado e suas consequências, insistindo sobre a sublimidade de nosso fim sobrenatural: “Se vossa justiça não é mais perfeita que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus” (Mt., V, 20). “Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celestial” (Mt., V, 48). Por quê? Porque Jesus nos dá a graça que é uma participação da vida íntima de Deus, superior a vida natural dos anjos, a fim de conduzir-nos à união com Deus, já que estamos destinados a contemplá-Lo como Ele se vê a si mesmo, e amá-Lo como Ele se ama. Este é o sentido das palavras: “Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai celestial”.

Porém, isso exige a mortificação de tudo o que há em nós de vicioso, a mortificação dos movimentos desordenados da concupiscência, da cólera, do ódio, do orgulho, da hipocrisia.

Nosso Senhor foi muito explícito a respeito desta matéria no Sermão da Montanha. Em nenhuma ocasião ensinou tão claramente a mortificação, tanto interior quanto exterior, que o cristão deve praticar, e o espírito desta mortificação. Bastará trazer à memoria algumas dessas palavras do Salvador.

O verdadeiro cristão deve excluir, quanto o seja possível, qualquer ressentimento e animosidade de seu coração: “Se quando fordes apresentar tua oferta ante o altar, e ali te lembrares de que teu irmão tem alguma queixa contra ti, deixa ali mesmo tua oferenda diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois volta para apresentar tua oferta” (Mt., V, 24). “Põe-te logo de acordo com teu adversário”; porque é necessário ver nele não somente como um inimigo, mas a um irmão, a um filho de Deus. Bem-aventurados os mansos. Um dia um jovem israelita que sabia o Pai Nosso, teve a inspiração de perdoar seu maior inimigo; imediatamente recebeu a graça de crer no Evangelho e na Igreja.

Mortificação da concupiscência, dos maus olhares, dos maus desejos que são suficientes para cometer adultério no coração: “Se teu olho direito é para ti uma ocasião de pecar, arranque-o...; tua mão..., corta-a; pois é melhor para ti que perca um dos membros, do que ir com o corpo inteiro para o inferno” (Mt., V, 29). Não podia Nosso Senhor expressar-se de uma maneira mais enérgica; assim se explica que os santos, sobretudo para triunfar de certas tentações, aconselhem o jejum, as vigílias e outras austeridades corporais, que, praticadas com discrição, obediência e generosidade, submetem o corpo à servidão e asseguram a liberdade de espírito (1).

O Sermão da Montanha fala também da mortificação de qualquer desejo desordenado de vingança: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho, dente por dente; porém eu vos digo que não resistais ao mau” (Mt., V, 38). Não respondais com amargura a injúria, para fazer vingança; resisti até a morte se for preciso, aos que querem vos arrastar ao mal; porém suportai pacientemente as injurias, sem ódio, sem irritação: “Se alguém te ferir a face direita, ofereça lhe também a outra. E ao que quer chamar-te a juízo e tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa” (Mt., V, 40). Ou seja, viva disposto a suportar a injustiça com longanimidade; esta paciência desarma a cólera do adversário e o converte as vezes, como se pode ver nos três séculos de perseguição que teve que sofrer a nascente Igreja. O cristão deve sentir-se menos preocupado por defender seus direitos temporais, que por ganhar para Deus a alma de seu irmão irritado. Por aqui se vê a altura da justiça cristã, que sempre deve ir unida à caridade. Aos perfeitos se os admoesta aqui a que não se envolvam em litígios, ao menos que se trate de superiores interesses a eles confiados (2).

Na mesma passagem nos exige o Senhor a mortificação do egoísmo e do amor próprio, que nos inclina a afastarmos daquele vem pedir-nos um favor (Mt., V, 42); a mortificação dos juízos temerários (VII, 1); da soberba espiritual e da hipocrisia, que nos incitam a fazer as boas obras e a orar diante dos homens para ser vistos por eles (Mt., VI, 1-16).

Ensina-nos, enfim, qual deve ser o espírito de mortificação: morrer ao pecado e suas consequências por amor a Deus. Nosso Senhor se expressa aqui da maneira mais amável, o contrário que dirá a orgulhosa austeridade dos jansenistas. Diz assim em São Mateus, VI, 16: “Quando jejuais, não queirais fazer-vos tristes como os hipócritas, que desfiguram seus rostos para mostrar aos homens que jejuam. Em verdade vos digo que já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando jejuas, perfuma tua cabeça e leve bem teu rosto, para que não vejam os homens que jejuas, mas a teu Pai que está presente ao secreto, e teu Pai, que vê o secreto te dará a recompensa.”

Ou seja, segundo entenderam os Padres, perfuma tua cabeça com o óleo da caridade, da misericórdia e da alegria espiritual. Lava teu rosto, ou seja, limpa tua alma de todo espírito de ostentação. Quando te ocupas nestes atos de piedade, nada proíbe que sejas visto, senão o pretender sê-lo, porque perderias assim a pureza de intenção que diretamente te há de levar ao Pai, presente no segredo de tua alma.

Tal é o espírito da mortificação ou austeridade cristã, que os jansenistas nunca compreenderam; é o espírito de amor a Deus e ao próximo. É espírito de amor que se difunde sobre as almas para salva-las; é pela mesma razão espírito de mansidão, porque, como ser mansos, mesmo com os ásperos e mal-humorados, sem saber antes vencer-se a si mesmo, ser donos da própria alma? É um espírito que nos inclina a oferecer a Deus tudo o que nos puder acontecer de penoso, para que isto mesmo nos ajude a aproximarmos mais a Ele e para salvar as almas, de forma que tudo coopere ao bem, mesmo os obstáculos que encontremos no caminho, do mesmo modo que Jesus fez de sua Cruz o grande meio de salvação.

Por aqui se compreende que a mortificação cristã, por este espírito de amor de Deus, se eleve, como um cimo, acima da brandura do naturalismo prático e da austeridade orgulhosa e displicente. Está é a mortificação que podemos observar nos santos formados à imagem de Jesus Crucificado, quer se trate dos da Igreja Primitiva, como os primeiros mártires, seja dos da Idade Média como São Bernardo, São Domingos, São Francisco de Assis e Santo Tomás de Aquino, ou, enfim, como os mais recentes, como São José Bento Labre, o Santo Cura d’Ars, ou os canonizados mais recentemente, como São João Bosco e São José Bento Cotolengo. Mirabilis Deus in sanctis suis!

 Notas.


(1) - Buscando em primeiro lugar gozar deste mundo, fugindo do sofrimento que purifica e do dever nos momentos duros da vida.
(2) - Quem perde sua vida, sacrificando-se no cumprimento do dever por amor a mim, a salvará.
(3) - Santo Tomás, II, II, q. 147, de jejunio.
(4) - Santo Tomás, in Mat., V, 40.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

OS TRÊS TIPOS DE SANTIDADE



Pe. Garrigou-Lagrange, O.P.,
L’éternelle Vie et la Profondeur de l’Ame

A doutrina revelada sobre a morte, sobre o juízo particular, sobre o inferno, sobre o purgatório e o céu, leva-nos a pressentir o que é a outra vida e manifesta-nos a grandeza da alma humana que só Deus visto face a face pode irresistivelmente atrair e encher. O que nos faz tender para o céu, nosso destino, é a graça santificante, germe de vida eterna, e as virtudes infusas que dela derivam, sobretudo a fé, a esperança e a caridade acompanhadas dos sete dons do Espírito Santo.

Note-se, que estas três grandes virtudes teologais são hoje, por vezes, completamente desfiguradas. A fé em Deus, a esperança em Deus e o amor a Deus e às almas por ele, foram substituídas em muitos meios modernos pela fé e esperança na humanidade, pelo amor teórico da humanidade. Nesses meios, a fraseologia ocupou o lugar da doutrina sagrada. A arte de fazer frases substituiu a doutrina revelada acerca de Deus e da alma. Quando é assim, a falsidade não tem remédio.

Em certas lojas maçônicas lê-se nas paredes: “Fides, spes, caritas”. Chesterton afirmou sobre este ponto: “Grandes ideias que se tornaram loucas”.

Propriamente falando, não foram as ideias que se tornaram loucas, mas sim as pessoas, em consequência de perturbações fisiológicas e psíquicas, e, quanto mais elevada era a inteligência destas pessoas, mais esta loucura aflige e toma proporções que correspondem às das suas faculdades e da sua cultura. É por isso que a loucura religiosa e a mais difícil de curar, porque não se pode apelar para um motivo mais elevado; a inteligência perde-se no que tem de mais nobre. Nessa altura ela engana-se habitualmente, não quanto ao valor dos objetos mais ordinários, mas quanto ao das ideias mais elevadas, como a ideia de Deus, a das suas perfeições infinitas, a sua justiça, a sua misericórdia.

“As grandes ideias tornadas loucas” são as ideias religiosas que perderam significado superior e vieram a desarticular-se e a desequilibrar-se de todo. É o que acontece quando se substitui a fé em Deus, que não pode enganar-se nem nos enganar, pela fé na humanidade, apesar de todas as suas aberrações. E assim como a verdadeira fé, esclarecida pelos dons do Espírito Santo, pelos dons da inteligência e da sabedoria, constitui o principio da contemplação mística, a fé degenerada e desarticulada torna-se o principio de uma falsa mística, aprovada na paixão pelo progresso da humanidade, como se este progresso, pudesse ir até o infinito, como se fosse o próprio Deus que convertesse a nós. Quando alguém perguntava a Renan: “Deus existe?” ele respondia: “Ainda não”, sem se aperceber bem de era um blasfemo.

A antiguidade clássica não conheceu um tão profundo desequilíbrio. Depois dela, veio o Cristianismo, a elevação sobrenatural do Evangelho, e, quando alguém se separa dele, a queda é tanto mais rápida quanto se cai de mais alto.

A descida começou com Lutero, pela negação do sacrifício da Missa, do valor da absolvição sacramental, e, portanto, da confissão, pela negação, também, da necessidade de cumprir os mandamentos de Deus para obter a salvação. A queda acelerou-se depois, com os enciclopedistas e filósofos do século XVIII, com o “cristianismo corrompido” de Jean Jacques Rousseau, que subtraiu ao Evangelho o seu caráter sobrenatural e reduziu a religião ao sentimento natural que se encontra mais ou menos alterado em todas as religiões. A Revolução Francesa propagou por toda parte estas ideias. Na mesma época, Kant sustenta que a razão especulativa não pode provar a existência de Deus. Fichte e Hegel ensinam que Deus não existe fora e acima da humanidade; surge em nós e por nós e não é outra coisa senão o próprio progresso da humanidade, como se este, de tempos em tempos, não fosse acompanhado de um terrível retrocesso para a barbárie.

O Liberalismo pretende ocupar, entre o Cristianismo e estes erros monstruosos, uma posição eclética e não chega a conclusão alguma válida para a ação. Vê-se logo substituído pelo radicalismo na negação, depois, pelo socialismo e, finalmente, pelo comunismo materialista e ateu, como previa Donoso Cortès (1).

Este comunismo representa a negação de Deus, da família, da propriedade, da pátria e conduz a uma servidão universal, graças a mais terrível das ditaduras. A descida é acelerada com a queda dos graves.

***

Só há um caminho para voltar a subir: a verdadeira santidade. Mas é preciso encará-la de uma maneira realista. A santidade, como demonstra Santo Tomás (2), tem dois caracteres essenciais: a ausência de toda mancha, isto é, ausência de todo pecado, e uma firmíssima união com Deus.

Esta santidade atinge sua perfeição no céu, mas começa na terra. Manifesta-se concretamente, sobre as quais queremos insistir aqui. Realmente, há três grandes deveres para com Deus: conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo. Cumpri-los é ganhar a vida eterna. Há almas que tem, sobretudo, por missão, amar a Deus e fazer com que ele seja muito amado; são as almas de vontade forte, que recebem graças de amor ardente. Há outras que tem por missão dá-Lo a conhecer; nelas predomina claramente a inteligência e recebem, sobretudo, graças de luz. Finalmente, há almas que tem por missão, sobretudo, servir a Deus mediante a fidelidade ao dever cotidiano. É o caso da maioria dos bons cristão, que empregam a memória e a atividade prática para serem fiéis ao dever de cada dia.

Estas três formas de santidade parecem estar representadas em três apóstolos privilegiados: São Pedro, São João e São Tiago.

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As almas em que predomina a vontade recebem bastante cedo certas graças de amor ardente. Perguntam a si mesmas: Que devo fazer por Deus? Que obra empreenderei eu para sua glória? Sentem o desejo de sofre, de se mortificar, para provarem a Deus seu amor, para repararem as ofensas que Ele sofre, para salvarem os pecadores; e é secundariamente que elas se aplicam a melhor conhecerem a Deus.

A este grupo pertencem o profeta Elias, tão notável pelo seu zelo; São Pedro, tão profundamente dedicado a Jesus que, por humildade e por amor, quis ser crucificado de cabeça para baixo; os grandes mártires, Santo Inácio de Antioquia e São Lourenço. Mais próximos de nós, o seráfico São Francisco de Assis e Santa Clara. Mais tarde São Carlos Borromeu, São Vicente de Paula, a transbordar de caridade para com o próximo, Santa Margarida Maria Alacoque e o Santo Cura d’Ars.

O perigo dessas almas reside na energia de sua vontade, que pode degenerar em rigorismo, tenacidade, obstinação; nas menos fervorosas, o defeito dominante será um zelo pouco esclarecido, pouco paciente e pouco suave; por vezes, dedicar-se-ão demasiado às obras ativas em detrimento da oração.

As humilhações que o Senhor lhes envia tendem, sobretudo, a abrandá-las, a quebrar, por vezes, a sua vontade, quando ela se torna muito rígida, para se tornar inteiramente dócil à inspiração do Espírito Santo e para que o seu zelo ardente seja cada vez mais humilde, esclarecido, paciente e suave. Aí têm elas a encosta que vai dar no cume da perfeição.

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As almas em que predomina a inteligência têm outras encostas a subir. Recebem, muito cedo, certas graças de luz, que as leva à contemplação, e a grandes vistas de conjunto, apanágio da sabedoria. Só através da razão o seu amor aumenta. Sentem menos que as precedentes a necessidade de agir, ou de reparar. Mas, se são fiéis, atingirão o amor heroico para com Deus, que as anima.

A este grupo pertencem os grandes Doutores, Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, São Francisco de Sales, que lamentava a sua lentidão em seguir as luzes que tinha recebido.

O perigo destas almas é contentarem-se com estas luzes e não conformarem suficientemente com elas a sua conduta. Ao passo que a sua inteligência é muito esclarecida, falta à sua vontade certo ardor.

Estas almas sofrem, sobretudo com o erro, com as falsas correntes que extraviam a inteligência. As provações purificam-se e, quando as suportam com resignação, atingem um grande amor a Deus. Uma alma luminosa, fiel, estará mais unida a Deus que uma alma ardente, porém infiel.

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Finalmente, encontram-se almas em que a atividade predominante é a memória e a atividade prática. Têm, sobretudo por missão servir a Deus mediante a fidelidade ao dever cotidiano. Pertence a este numero a maioria das almas cristãs. A memória leva-as a evocar fatos particulares, são impressionadas por uma faceta da vida de um santo, por uma palavra da liturgia; a inspiração divina torna-as atentas aos diversos meios de perfeição. Se forem fieis, podem elevar-se, como as precedentes, aos mais altos graus de perfeição.

A este grupo de almas parece pertencer o apóstolo São Tiago, os grandes pastores da Igreja primitiva, inteiramente dedicados ao martírio e à direção da sua diocese; e, modernamente, Santo Inácio, atento aos meios mais práticos de santificação e desejoso de considerar os homens tais como são e não apenas tais como deveriam ser; Santo Afonso de Ligório, totalmente preocupado com a moral e com o apostolado prático, cuja necessidade se fazia sentir tanto para lutar contra o jansenismo e contra a incredulidade.

O perigo para estas almas estará em ligarem-se demasiado às boas obras em si mesmas, mas que só indiretamente conduzem a Deus. Algumas delas insistiram na austeridade, outra na devoção, outras, nos seus trabalhos habituais, outras, ainda, na recitação infindável de fórmulas. Talvez venha a encontra como inimigos a minucia e os escrúpulos, que tornarão mais demorado o acesso à contemplação a que o Senhor as chama e prejudicará a intimidade da sua união com Ele. Atêm-se a métodos e a meios que lhe serviram num determinado momento, mas que mais tarde as afastam da contemplação simples e amorosa de Deus.

As provações destas almas encontram-se, sobretudo, na prática da caridade fraterna e no apostolado; sofrerão muito com os defeitos do próximo, mas, se são fieis, no meio de todas estas dificuldades, acabarão por alcançar uma união íntima com Nosso Senhor.

Eis as três principais formas de santidade, correspondentes aos nossos três grandes deveres para com Deus: conhece-Lo, amá-Lo e servi-Lo.

Jesus mostrou-nos a excelência destas três formas de santidade na sua vida oculta, na sua vida apostólica e na sua vida dolorosa.

Na sua vida oculta, na solidão de Nazaré, na sua casa de carpinteiro, ele foi o exemplo da fidelidade ao dever cotidiano, mediante a prática de atos aparentemente sem valor, mas apreciáveis pelo amor que as inspira e até de um valor infinito.

Na sua vida apostólica aparece como a Luz do mundo: “O que me segue não anda nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo VIII, 12). Não é que Ele acredite no que ensina sobre a vida eterna e sobre os meios para alcançá-la; vê-o imediatamente na essência divina (3). Funda a Igreja e confia-a a São Pedro. Diz a seus apóstolos: “Vós sois a luz do mundo” (Mt V, 14) e envia-os a ensinar todos os povos, e levar-lhes o batismo, a absolvição, a eucaristia (Mt XVI, 18, 19; XVIII, 19). E volta a insistir em tudo isso após a ressurreição (Mt XXVIII, 19).

Na sua vida dolorosa, Jesus manifesta-nos todo o ardor do seu amor para com o Pai e para conosco. Este amor leva-o a morrer por nós na Cruz, para reparar a ofensa feita a Deus e para salvar as almas.

Uma vez que Jesus possui eminentemente estas três formas de santidade, domina todos os perigos que nelas encontram outras almas. Possui todo o ímpeto do amor, sem rigidez nem tenacidade. Nunca seu amor foi mais ardente nem manifestou maior suavidade que na Cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

Jesus goza da contemplação mais luminosa e mais elevada, mas não se perde nesta contemplação, não se mostra alheio, fora do mundo como um santo em êxtase. Jesus está acima do êxtase e, sem deixar de contemplar o Pai e de estar intimamente unido a Ele, entretém-se com os apóstolos acerca dos próprios pormenores da vida apostólica.

Finalmente, se Jesus está atento às menores coisas que dizem respeito ao serviço de Deus, não corre o perigo de parar muito tempo nelas, perdendo de vista as coisas maiores. Não deixam de ver tudo em Deus, as coisas do tempo e as da eternidade.

A alma santa de Jesus aparece maior quando se compara com os maiores santos, da mesma maneira que a luz branca é superior às sete cores do arco-íris que dela procedem. Guardadas as devidas proporções, deve observar-se o mesmo a respeito da santidade eminente de Maria Santíssima, Mãe de Deus e cheia de graça. Aí temos os mediadores que Deus nos concedeu por causa de nossa fraqueza. Deixemo-nos conduzir humildemente por eles e eles nos conduzirão infalivelmente à vida da eternidade. A vida da graça é já a vida eterna começada, inchoatio quaedam vitae aeterne.


Notas:

  (1)       – Cfr. Oeuvres de Donoso Cortès, tradução francesa, Paris, 2a. ed. t. II, p. 272 e segs. O principio gerador dos mais graves erros dos nossos dias, carta de trinta páginas escrita em 1862, para ser apresentada a Pio IX. – Discursos sobre a situação geral da Europa, ibid., t. I, p. 399 § segs. Item, t. III, p. 279 e segs.
  (2)       II, II, q. 81, a. 8.
  (3)       Cfr. Santo Tomás, III, q. 9, a. 2; q. 10.