Pe.
Garrigou-Lagrange, O.P.,
La
Providence et la Confiance en Dieu
Qual
é o objeto secundário da caridade?
Nos
diz o segundo mandamento da Lei: “Amarás
o teu próximo como a ti mesmo por amor a Deus.” O objeto secundário da caridade somos, antes de tudo, nós mesmos,
devemos nos amar santamente, desejando nossa salvação para glorificar
eternamente a Deus; o é, em segundo lugar o próximo, a quem por amor a Deus
temos que amar como a nós mesmos, desejando-lhe a salvação e os meios que
conduzem a ela, afim de que juntamente conosco glorifique eternamente a
Deus. Nosso Senhor nos apresenta o amor ao próximo como consequência
necessária, irradiação e sinal certo do amor de Deus: “Nisto conhecerão que são meus discípulos, se tiveres amor uns aos
outros” (Jo 13,35). E diz em outro lugar São João: “Se alguém diz: amo a Deus; porém
aborrece seu irmão é um mentiroso” (I Jo 4,20).
A
caridade fraterna, como se vê, difere infinitamente da inclinação natural que
nos move a fazer o bem ao próximo para o agradar, ou nos leva a amar os
benfeitores, a aborrecer aos que nos fazem mal e a ser indiferente com os
demais. O amor natural nos faz nos faz amar o próximo por suas boas qualidades
naturais e pelos benefícios que dele recebemos. Porém o motivo da caridade é
muito distinto; a prova disto é que devemos “amar
mesmo nossos inimigos, fazer o bem aos que nos aborrecem e orar pelos que nos
perseguem” (Lc. 6, 27-35).
A
caridade é também superior à Justiça, não somente a comutativa e a
distributiva, mas também à justiça legal e à equidade, que nos mandam respeitar
os direitos do próximo por amor ao bem comum da sociedade.
A caridade nos faz amar a nosso
próximo e mesmo nossos inimigos, por amor a Deus com o mesmo amor
sobrenatural e teologal com que amamos a Deus.
Porém,
como é possível amar com amor divino aos homens, que em geral, são imperfeitos
e mesmo malvados?
A
Teologia responde com um exemplo muito simples que comenta Santo Tomás desta
maneira: “O que muito ama seu amigo, ama com o mesmo amor aos filhos deste
amigo; os ama porque ama a seu pai, e em consideração a seu pai lhes deseja
todo bem; se necessário fosse, iria em socorro deles por amor a seu pai e mesmo
perdoaria suas ofensas. Se os homens, pois, são filhos de Deus, ou ao menos são
chamados a sê-lo, devemos amar a todos, mesmo nossos inimigos, e ama-los na
medida com que amamos nosso Pai comum” (1).
Para amar desta maneira a
sobrenatural a nosso próximo, preciso é contemplá-lo com os olhos da fé, dizendo:
esta pessoa de temperamento e de carácter opostos aos meus, “não nasceu somente
da vontade da carne e do sangue ou da vontade do homem”; como eu, “nasceu de
Deus” ou foi chamada a nascer de Deus, a participar da mesma vida divina, da
mesma bem-aventurança. Com estes olhos devem olhar-se todos os membros de uma
mesma família; e não somente estes, mas também os da mesma associação e da
mesma pátria, e muito mais aos da Igreja inteira, que sem desconhecer a natural
e necessária variedade de pátrias, as compreende todas para dar entrada a todos
seus membros no Reino de Deus.
E
assim, podemos e devemos dizer das almas com quem vivemos e mesmo daquelas que
naturalmente nos são antipáticas: Esta
alma, mesmo quando não estiver em graça de Deus é certamente chamada a estar ou
a tornar-se filha de Deus, templo do Espírito Santo, membro do corpo místico de
Cristo; quem sabe este esteja mais próximo que eu do Coração de Nosso Senhor e
seja uma pedra viva trabalhada mais que muitas outras pela mão de Deus, para
ocupar um lugar na Jerusalém Celeste.
Como,
pois, não ama-la, se amo a Deus de verdade? E, se não amo esta pessoa, se não
desejo seu bem e sua salvação, meu amor
a Deus é uma mentira. Se, pelo contrário, a amo, não obstante a diferença
de temperamento, de caráter e de educação, é sinal que amo a Deus. Posso realmente
amar esta pessoa com o mesmo amor essencialmente
sobrenatural e teologal com que amo as Três Pessoas divinas; porque nela
amo a participação da vida íntima de Deus que já recebeu ou está destinada a
receber, amo a realização da ideia divina que dirige seu destino e a glória que
é chamada a dar a Deus.
Objetam
os incrédulos: porém, é isso realmente amar o homem? Não é melhor amar no homem
somente a Deus e a Cristo, como se admira um diamante em seu precioso cofre?
O
homem queria que o amassem por si mesmo; mas não é esse título para exigir o
amor divino. Para reagir contra tão egoísta tendência dizia Pascal com frase
intencionalmente paradoxal: “Não quero que me amem.”
Realmente a caridade não ama
somente a Deus no homem, senão o homem em Deus e o homem por Deus. Porque a caridade o que deve ser o homem,
parte imperecedoura do Corpo Místico de Cristo, e faz tudo que está a seu poder para que consiga alcançar o céu. A caridade
ama mesmo o que o homem é por graça e, se não tem a graça, ama nele a natureza,
não decaída, lastimada e hostil à graça, mas porque é capaz de recebe-la.
A caridade ama o homem mesmo, porém
por Deus, para a glória que é chamado a tributar-lhe, que consiste na
manifestação esplêndida da Bondade divina.
Tal é a essência do amor ao próximo
ou da caridade fraterna: extensão de nosso amor de Deus a todos que são por
Ele amados.
***
Daqui
nascem as propriedades da caridade fraterna. Segundo ficou dito, deve ser
universal, sem fronteiras. Não pode excluir ninguém, nem na terra, nem no
purgatório, nem no céu. Somente se detém ante o inferno. Só se exclui os
condenados que não são capazes de chegar a serem filhos de Deus e não há neles
a menos chance de ressurgir; o orgulho e o ódio os impedem de sequer pensar em
pedir perdão. Porém, fora do caso certo
da condenação de uma alma, quem pode estar certo disso? A caridade se
estende a todos, sem outros limites que do amor do Coração mesmo de Deus.
Resplandece
aqui uma grandeza incomparável, que tanto mais ressalta, quanto mais divididas,
humanamente falando, estão as almas, como aconteceu na guerra passada, quando
um soldado alemão terminava a Ave Maria que a morte tinha deixado incompleta
nos lábios de um soldado francês. Nosso Senhor e a Virgem Santíssima uniam
aqueles dois irmãos, embora suas respectivas nações continuavam profundamente
divididas. Este é o grande triunfo da caridade.
Para ser universal, não necessita a
caridade ser igual para com todos; porque a caridade
respeita e eleva a ordem ditada pela natureza. Devemos amar primeiro e
sobretudo a Deus, mais que a nós mesmos, pelo menos com amor de estima (appretiative); e, se bem que, nem
sempre sentimos esse fervor sensível do coração para com Ele, ao menos a
intensidade deste amor deve ir constantemente em aumento. Logo, temos que amar
nossa alma para glorificar eternamente a Deus, depois ao próximo e, finalmente,
nosso corpo, dispostos sempre a sacrifica-lo pela salvação de uma alma,
sobretudo quando é obrigação nossa fazê-lo. No que toca ao próximo, temos que amar primeiro os melhores, os que
estão mais próximos de Deus, e também aqueles que estão mais próximos de nós
pelo sangue, a afinidade, a vocação ou a amizade. Quando mais próxima de Deus
está uma alma, mais merece nosso carinho. Quando mais próxima de nós está, mais
íntimo é nosso amor por ela e mais completa deve ser nossa abnegação no que se
refere à família, a pátria, a vocação e a amizade (2). Donde que
a caridade não destrói o patriotismo, mas o eleva, como aconteceu com Santa
Joana Darc e São Luís
.
Tal é a ordem da caridade: Deus
quer reinar em nosso coração, mas sem excluir carinho algum que seja compatível
ao Seu; antes o eleva, o vivifica e o faz mais nobre e mais generoso. Mesmo aos
inimigos da Igreja devemos amar, rogando por eles; porém seria transtornar a
ordem da caridade, com o pretexto de misericórdia, amar mais aos inimigos da
Igreja que alguns de seus filhos que trabalham ao nosso lado.
Finalmente,
a caridade fraterna, como o amor de Deus, não deve ser só afetiva, mas também
efetiva e ativa, não somente benévola, mas também benfeitora. No lo disse Nosso
Senhor: “Amai vos como eu vos tenho amado”;
Ele nos amou até a morte de Cruz; os santos o imitaram fazendo de sua vida
um ato contínuo de caridade transbordante, fonte de paz e santa alegria.
Tal
é a caridade fraterna, extensão ou prolongação de nosso amor a Deus.
Continua...
Notas:
(1) –
Santo Tomás, IIa – IIae, as duas grandes questões 25 e 26 sobre a extensão e a
ordem da caridade. As resumimos nas páginas seguintes do texto.
(2) –
Santo Tomás, IIa – IIae, q. 26, a.8.
Nenhum comentário:
Postar um comentário