Pe.
Garrigou-Lagrange, O.P.,
Les Trois Ages
de la Vie Intérieure
Sobre a mortificação
cristã, notemos, em primeiro lugar, duas tendências extremas e errôneas: de um
lado o naturalismo prático que é tão frequente e no que caíram os quietistas, e
de outro lado, a orgulhosa austeridade jansenista, que está muito afastada do
proceder do amor de Deus. A verdade se ergue como o cume em meio desses dois
extremos, que representam os desvios contrários dos erros.
O Naturalismo Prático,
na Ação e na Inanição
O
naturalismo prático, que é a negação do espírito de fé na conduta da vida, continuamente
tende a renascer em formas mais ou menos acentuadas, como a poucos anos pudemos
ver no americanismo e no modernismo. Em muitas obras que apareceram nesta
época, se menosprezava a mortificação e os votos religiosos, nos que se
pretendia ver, não uma libertação que favorecia ao voo da vida interior, mas
como um impedimento para o apostolado. Diziam-nos: “Porque falar tanto de mortificação sendo o cristianismo uma doutrina
de vida? De renuncia se o cristianismo deve assimilar-se toda atividade humana
em vez de destruí-la? De obediência se o cristianismo é uma doutrina de
liberdade? Essas virtudes passivas, continuavam, não tem maior importância senão para os espíritos negativos, incapazes
de empreender coisa alguma e sem outra fortaleza que a da inercia.”
Por
que, seguem dizendo, desprezar
nossa atividade natural? Não é boa nossa natureza? Não procede de Deus e está
inclinada a ama-Lo sobre todas as coisas? Nossas mesmas paixões, movimentos de
nossa sensibilidade, desejo e aversão, gozo ou tristeza, não são boas nem más;
são o que nossa intenção põe nelas. Trata-se de energias que é preciso utilizar
e não é lícito anulá-las, mas as devemos moderar e regular. Esta é a doutrina
de Santo Tomás, muito diferente, acrescenta-se, de tantos autores de espiritualidade e muito pouco em consonância com o
que diz o capítulo da Imitação, III, c. LIV, a respeito dos ‘diversos
movimentos da natureza e da graça’.”
Claro está que ao falar
assim contra o autor da Imitação, deixava
um pouco no esquecimento essas palavras do Salvador: “Em verdade vos digo, se o
grão de trigo, depois de caído na terra, não morre, fica infecundo; porém, se
morre, produz muito fruto. O que ama sua alma a perderá; mas o que a aborrece
neste mundo, a conserva para a vida eterna” (Jo XII, 24).
Diziam também: “Por que combater tanto o próprio juízo, a
própria vontade? Isso equivale a reduzir-se a um estado de servidão que destrói
toda iniciativa, e faz perder o contato com o mundo, que não devemos desprezar,
mas melhorar”. Porém, ao falar assim, não caía no esquecimento o sentido
preciso que os verdadeiros tratadistas de espiritualidade deram à “vontade
própria”, que sempre significou a vontade não conforme a vontade de Deus?
Nesta objeção formulada
pelo americanismo e depois repetida pelo modernismo (1), a
verdade vem habilmente mesclada com a mentira e o erro; até se invoca a
autoridade de Santo Tomás e com frequência se repete esse princípio do grande
Doutor: “A graça não destrói a natureza,
antes, a aperfeiçoa”; os movimentos da natureza não são tão desregrados, se
afirma como sustenta o autor da Imitação,
e é necessário o total desenvolvimento da
natureza dirigida pela graça.
E como falta o
verdadeiro espírito de fé, se falseia o princípio de Santo Tomás que se invoca.
Fala este da natureza como tal, no
sentido filosófico da palavra; da natureza no que tem de essencial e bom, que é
obra de Deus, e não da natureza decaída e
ferida, tal como esta de fato, como consequências do pecado original e
nossos pecados pessoais, mais ou menos deformada por nossos egoísmos, às vezes
inconsciente, por nossos desejos desordenados e nossa soberba. Refere-se
igualmente Santo Tomás às paixões ou
emoções como tais, e não enquanto estão desordenadas,
quando se afirma que são forças que devem utilizar-se; mas para tirar proveito
delas, preciso mortificar o que em tais há de desordenado; e não basta dissimulá-lo
e regulá-lo, mas é necessário fazer morrer totalmente.
Estes e outros equívocos
semelhantes não tardam em produzir suas consequências. Por seus frutos se
conhece a árvore; e querendo agradar excessivamente o mundo, em vez de convertê-lo,
esses apóstolos de novo estilo, que foram os modernistas, deixaram-se perverter
por ele.
E assim eles desconheceram
as consequências do pecado original; ouvindo-os
falar, dir-se-ia que o homem nasce bom e perfeito, como sustentavam os
pelagianos e mais tarde Jean Jacques Rousseau.
Eles esqueceram a gravidade do pecado mortal como ofensa
feita a Deus, e só o consideraram com uma desordem que dana o homem. Em consequência,
tiraram a importância e a gravidade do pecado do espírito: incredulidade,
presunção e orgulho. Dir-se-ia que a falta mais grave é abster-se das obras
sociais; e como consequência, a vida puramente contemplativa era considerada
como coisa quase inútil ou como ocupação de inúteis ou incapazes.
O mesmo Deus quis
replicar a esta objeção pela canonização de Santa Teresinha do Menino Jesus e
pela extraordinária irradiação desta alma contemplativa.
Desconhecia-se
igualmente a infinita elevação de nosso
fim sobrenatural: Deus autor da graça. E em vez de falar de vida eterna e
de visão beatífica, se falava de um vago ideal moral com aparência de religião,
no qual desaparece a radical oposição entre o céu e o inferno.
Esquecia-se, enfim, que
o instrumento que Nosso Senhor quis empregar para salvar o mundo foi a Cruz.
A nova doutrina, em todas
as suas consequências deixava entrever seu princípio e fundamento: o
naturalismo prático, não o espírito de Deus senão o da natureza, negação do
sobrenatural, se não teórica, ao menos na conduta da vida. Essa negação foi formulada várias
vezes na época do modernismo: a mortificação não é essencial ao cristianismo.
Porém, que outra coisa é a mortificação senão a penitência? E não é
essa necessária ao cristão? Como então poderia ter escrito São Paulo: “Trazemos sempre em nosso corpo, por todas
as partes, a mortificação de Jesus, a fim de que a vida de Jesus se manifeste
também em nossos corpos” (II Cor. IV, 10)?
Sob outra nova capa, o
naturalismo prático fez sua aparição entre os quietistas, na época de Molinos,
no século XVII. Foi um naturalismo, não de ação, como no americanismo, senão de
inação. Pretendia Molinos que “querer
obrar, é uma ofensa feita a Deus, que quer obrar, só, em nós” (2).
Deixando de obrar, sustentava, a alma se aniquila e volta a seu princípio, e,
neste estado, Deus, só, vive e reina com ela (3). Assim chega-se ao
naturalismo prático por um caminho contrário ao do americanismo que exalta a
atividade natural.
Molinos deduzia de seu
principio que a alma não deve realizar atos de conhecimento ou de amor de Deus (4);
nem pensar no céu ou no inferno, nem
refletir sobre seus atos, nem sobre seus defeitos (5); o exame
de consciência ficava assim suprimido. Acrescentava Molinos que tampouco deve a
alma desejar sua própria perfeição, nem a salvação (6); nem pedir a
Deus coisa alguma determinada (7), se não que se abandonar a Ele,
para que faça nela, sem ela, sua divina vontade. E dizia, enfim: “A alma não tem necessidade de resistir
positivamente às tentações (8); a cruz voluntária da mortificação é uma carga pesada e inútil, da
qual temos que nos desembaraçar” (9).
Recomendava permanecer,
na oração, em uma fé obscura, em um repouso em que se deve esquecer todo o
pensamento preciso, relativo à Humanidade de Jesus, ou mesmo as Perfeições
divinas, a Santíssima Trindade; e permanecer nesta quietude sem produzir ato
algum. “Nisto consiste”, dizia ele, “a contemplação adquirida, na qual é preciso
permanecer toda a vida, se Deus não o eleva a contemplação infusa” (10).
Na realidade, esta
contemplação, assim adquirida por
cessação de todo ato, não era outra coisa que uma piedosa sonolência, mais
sonolenta que piedosa, da que certos quietistas nunca queriam sair, nem mesmo
para ajoelhar-se na elevação durante a Missa. Assim permaneciam em sua
pretendida união com Deus, que confundiam com uma augusta forma do nada. Tal estado
faz pensar mais em um nirvana dos budistas que na união transformante e
comunicativa dos santos.
Daí se vê que a
contemplação adquirida, que Molinos aconselhava a todos, era uma passividade, não infusa, senão adquirida voluntariamente mediante a
cessação de toda atividade. O mesmo atribuía a esta pretendida contemplação
adquirida coisas que não são verdade e suprimia
com um único golpe toda a ascética e a prática das virtudes, considerada pela
Tradição como a verdadeira disposição para a contemplação infusa e união com
Deus. Também pretendia que “a distinção
das três vias: purgativa, iluminativa e unitiva, é o maior absurdo que se tenha
dito na mística; já que, explicava, só há um caminho para todos igual, o
caminho interior” (11).
Tal supressão da
mortificação conduzia às mais profundas desordens, até chegar a dizer Molinos
que as tentações do demônio são sempre úteis, mesmo quando nos arrastam a atos
desonestos; e que nem mesmo nestes casos é preciso fazer atos das virtudes
contrárias, mas há que resignar-se, já que tais coisas revelam nosso nada e
pobreza (12). Só que Molinos, em lugar de chegar, por este caminho,
ao menosprezo de si mesmo pelo reconhecimento da própria culpabilidade,
pretendia chegar à impecabilidade (13),
e a morte mística; singular impecabilidade que se conciliava com todas as
desordens (14).
Tão lamentável doutrina
é uma caricatura da mística Tradicional, que fica radicalmente falseada em
todos os seus princípios. E com o pretexto de evitar a atividade natural que o
naturalismo de ação exalta, degenera aqui no naturalismo prático da preguiça e
da inação. Era, por outro caminho, a supressão da ascética, do exercício das
virtudes e da mortificação (15).
Os erros do quietismo
demonstram que é possível o naturalismo prático daqueles que perderam a vida
interior e o outro, bem distinto, dos que nunca o possuíram.
No extremo oposto do
naturalismo prático, se encontra às vezes, embora seja coisa rara, a orgulhosa austeridade de um falso
sobrenaturalismo, segundo se pode ver no jansenismo, e antes, em diversas
manifestações de fanatismo, como entre os montanistas no século II e entre os flagelantes
do século XII. Todas essas seitas perdem de vista o espírito de mortificação
cristão, que não é soberba, mas de amor de Deus.
No século XVII, os
jansenistas caíram em um pessimismo que uma alteração da ideia cristã da
penitencia. Exageravam, como os primitivos protestantes, as consequências do
pecado original, até o extremo de dizer que o homem não conservava o livre
arbítrio, a liberdade de indiferença, mas somente a espontaneidade: e que todos
os atos dos infiéis são pecado (16). Ensinava que “o homem deve fazer, durante toda sua vida,
penitencia pelo pecado original” (17). Em consequência, retinham
as almas, durante toda a vida, na via purgativa, e as afastava da comunhão, com
a desculpa que não somos dignos de união tão íntima com Nosso Senhor; só
poderiam ser admitidos a ela, aqueles que têm um puríssimo amor de Deus, sem
limites nem misturas (18). Esqueciam que tal amor é precisamente o
efeito da comunhão, quando esta vai acompanhada da luta generosa contra o que
há em nós de desordenado. O jansenismo jamais chegou à liberdade interior e a
paz (19).
É preciso, nesta, como
em outras questões, evitar os erros opostos entre si: o naturalismo prático e a
orgulhosa austeridade. A verdade se encontra entre esses dois extremos e muito
acima deles, como um cume. Assim se vê com toda evidencia, se se considera, de
uma parte, a elevação de nosso fim último e da caridade e, por outra, a
gravidade do pecado mortal e suas consequências.
(Continua...)
(1) – Denzinger, Enchiridion, n. 1967 sq., 2104.
(2)
- Denzinger, Enchiridion, n. 1221 sq.
(3)
– Ibid., 1224 sq.
(4)
- Ibid., 1226.
(5)
- Ibid., 1227-1229, 1232.
(6)
- Ibid.,
1233 sq.
(7)
- Ibid., 1234.
(8)
- Ibid., 1257.
(9)
- Ibid., 1258.
(10)
– Denzinger, Ibid., 1243.
(11)
- Ibid., 1246.
(12)
- Ibid., 1257-1266.
(13)
- Ibid., 1257-1286.
(14)
– Cf. Denzinger, 1268: “Hujusmodi
violentiae (daemonis) sunt médium magis proportionatum ad annihilandam animam
et ad eam adveram transformationem et unionem perducedam”; n° 1268: “Melius est
ea non confiteri; quia non sunt peccata, nec etiam venialia.”
(15)
Veja-se a respeito
dessas aberrações dos quietistas, a obra de P. Dupon: Michel Molinos. De sua
leitura se deduz que um dos principais erros do quietismo espanhol foi o
considerar como adquirida, por próprio esforço da vontade (mediante a supressão
dos atos), a oração de quietude, que, na realidade é infusa, como o prova Santa
Teresa (IV Morada). Fingia-se assim a oração infusa antes de tê-la recebido, e
se a desfigurava completamente suprimindo toda a ascese.
(16)
Denzinger, n° 1094,
1291, 1298.
(17)
Ibid.,
1309: “Homo debet agere tota vita
poenitentiam pro peccato originali.”.
(18)
Ibid.,
1313: “Ascendi sunt a sacra communione,
quibus nondum inest amor Dei purissimus et omnis mixtionis expers.”
(19)
Diz-se de Pascal que
toda sua vida esteve pensando na santidade sem alcança-la jamais, por ter
permanecido em presença de si mesmo em vez de estar na presença de Deus.
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