Pe. Garrigou-Lagrange,
O.P.,
Les Trois Ages
de la Vie Intérieure
A Mortificação Segundo
o Evangelho
Para compreender bem,
em oposição aos dois erros extremos que acabamos de falar, qual é o verdadeiro
espírito da mortificação cristã, é preciso que olhemos o que dela nos diz Nosso
Senhor no Santo Evangelho e como a compreenderam e viveram os santos.
Não
veio Nosso Salvador à Terra para realizar obra humana de filantropia, senão uma
divina obra de caridade; e a cumpriu falando aos homens mais de seus deveres
que de seus direitos, recordando-lhes a necessidade de morrer totalmente ao
pecado para fazerem-se dignos de receber abundantemente uma nova vida, e quis
dar-lhes provas de seu amor até morrer na Cruz para resgatá-los.
Estes dois aspectos de morte ao pecado e vida superior vão sempre mencionado
juntos, com uma nota dominante, que é o amor de Deus. Nada parecido se encontra
nos erros antes citados.
Qual é a doutrina de
Nosso Senhor com relação a mortificação? Em São Lucas, IX, 23 diz: “Se alguém quer vir após, negue-se a si
mesmo e tome sua cruz, todos os dias e segue-me. Porque o que quiser salvar sua
vida (1), a perderá; e ao contrário, o que perder sua vida por amor
de mim, a salvará (2). Que adianta o homem ganhar o mundo inteiro, se
perde a si mesmo?”
Jesus, no Sermão da
Montanha, nos ensina a necessidade de mortificação, ou seja, da morte ao pecado
e suas consequências, insistindo sobre a sublimidade de nosso fim sobrenatural:
“Se vossa justiça não é mais perfeita que
a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus” (Mt., V, 20). “Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai
celestial” (Mt., V, 48). Por quê? Porque Jesus nos dá a graça que é uma
participação da vida íntima de Deus, superior a vida natural dos anjos, a fim
de conduzir-nos à união com Deus, já que estamos destinados a contemplá-Lo como
Ele se vê a si mesmo, e amá-Lo como Ele se ama. Este é o sentido das palavras: “Sede perfeitos como é perfeito vosso Pai
celestial”.
Porém, isso exige a mortificação de tudo o que há em nós de
vicioso, a mortificação dos movimentos desordenados da concupiscência, da
cólera, do ódio, do orgulho, da hipocrisia.
Nosso Senhor foi muito
explícito a respeito desta matéria no Sermão da Montanha. Em nenhuma ocasião
ensinou tão claramente a mortificação, tanto interior quanto exterior, que o
cristão deve praticar, e o espírito desta mortificação. Bastará trazer à
memoria algumas dessas palavras do Salvador.
O verdadeiro cristão
deve excluir, quanto o seja possível, qualquer ressentimento e animosidade de seu coração: “Se quando fordes apresentar tua oferta ante o altar, e ali te lembrares
de que teu irmão tem alguma queixa contra ti, deixa ali mesmo tua oferenda
diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão, e depois volta
para apresentar tua oferta” (Mt., V, 24). “Põe-te logo de acordo com teu adversário”; porque é necessário ver
nele não somente como um inimigo, mas a um irmão, a um filho de Deus.
Bem-aventurados os mansos. Um dia um jovem israelita que sabia o Pai Nosso, teve a inspiração de perdoar
seu maior inimigo; imediatamente recebeu a graça de crer no Evangelho e na
Igreja.
Mortificação da
concupiscência, dos maus olhares, dos maus desejos que são suficientes para
cometer adultério no coração: “Se teu
olho direito é para ti uma ocasião de pecar, arranque-o...; tua mão...,
corta-a; pois é melhor para ti que perca um dos membros, do que ir com o corpo
inteiro para o inferno” (Mt., V, 29). Não podia Nosso Senhor expressar-se
de uma maneira mais enérgica; assim se explica que os santos, sobretudo para
triunfar de certas tentações, aconselhem o jejum, as vigílias e outras
austeridades corporais, que, praticadas com discrição, obediência e
generosidade, submetem o corpo à servidão e asseguram a liberdade de espírito (1).
O Sermão da Montanha
fala também da mortificação de qualquer desejo desordenado de vingança: “Ouvistes o que foi dito: olho por olho,
dente por dente; porém eu vos digo que não resistais ao mau” (Mt., V, 38). Não respondais com amargura a injúria, para
fazer vingança; resisti até a morte se for preciso, aos que querem vos arrastar
ao mal; porém suportai pacientemente as injurias, sem ódio, sem irritação: “Se alguém te ferir a face direita, ofereça
lhe também a outra. E ao que quer chamar-te a juízo e tirar-te a túnica,
cede-lhe também a capa” (Mt., V, 40). Ou seja, viva disposto a suportar a injustiça com longanimidade; esta paciência
desarma a cólera do adversário e o converte as vezes, como se pode ver nos três
séculos de perseguição que teve que sofrer a nascente Igreja. O cristão deve
sentir-se menos preocupado por defender seus direitos temporais, que por ganhar
para Deus a alma de seu irmão irritado. Por aqui se vê a altura da justiça
cristã, que sempre deve ir unida à caridade. Aos perfeitos se os admoesta aqui
a que não se envolvam em litígios, ao menos que se trate de superiores
interesses a eles confiados (2).
Na mesma passagem nos
exige o Senhor a mortificação do egoísmo
e do amor próprio, que nos inclina a afastarmos daquele vem pedir-nos um
favor (Mt., V, 42); a mortificação dos
juízos temerários (VII, 1); da
soberba espiritual e da hipocrisia, que nos incitam a fazer as boas obras e a orar
diante dos homens para ser vistos por eles (Mt., VI, 1-16).
Ensina-nos, enfim, qual
deve ser o espírito de mortificação:
morrer ao pecado e suas consequências por amor a Deus. Nosso Senhor se
expressa aqui da maneira mais amável, o contrário que dirá a orgulhosa
austeridade dos jansenistas. Diz assim em São Mateus, VI, 16: “Quando jejuais, não queirais fazer-vos tristes
como os hipócritas, que desfiguram seus rostos para mostrar aos homens que
jejuam. Em verdade vos digo que já receberam sua recompensa. Tu, porém, quando
jejuas, perfuma tua cabeça e leve bem teu rosto, para que não vejam os homens
que jejuas, mas a teu Pai que está presente ao secreto, e teu Pai, que vê o
secreto te dará a recompensa.”
Ou
seja, segundo entenderam os Padres, perfuma tua cabeça com o óleo da caridade,
da misericórdia e da alegria espiritual. Lava teu rosto, ou seja, limpa tua
alma de todo espírito de ostentação. Quando te ocupas nestes atos de piedade,
nada proíbe que sejas visto, senão o pretender sê-lo, porque perderias assim a
pureza de intenção que diretamente te há de levar ao Pai, presente no segredo
de tua alma.
Tal é o espírito da
mortificação ou austeridade cristã, que os jansenistas nunca compreenderam; é o espírito de amor a Deus e ao próximo. É
espírito de amor que se difunde sobre as almas para salva-las; é pela mesma
razão espírito de mansidão, porque, como
ser mansos, mesmo com os ásperos e mal-humorados, sem saber antes vencer-se a
si mesmo, ser donos da própria alma? É um espírito que nos inclina a
oferecer a Deus tudo o que nos puder acontecer de penoso, para que isto mesmo
nos ajude a aproximarmos mais a Ele e para salvar as almas, de forma que tudo
coopere ao bem, mesmo os obstáculos que encontremos no caminho, do mesmo modo
que Jesus fez de sua Cruz o grande meio de salvação.
Por aqui se compreende
que a mortificação cristã, por este espírito de amor de Deus, se eleve, como um
cimo, acima da brandura do naturalismo prático e da austeridade orgulhosa e displicente.
Está é a mortificação que podemos observar nos santos formados à imagem de
Jesus Crucificado, quer se trate dos da Igreja Primitiva, como os primeiros mártires,
seja dos da Idade Média como São Bernardo, São Domingos, São Francisco de Assis
e Santo Tomás de Aquino, ou, enfim, como os mais recentes, como São José Bento
Labre, o Santo Cura d’Ars, ou os canonizados mais recentemente, como São João
Bosco e São José Bento Cotolengo. Mirabilis Deus in sanctis suis!
Notas.
(1) - Buscando em primeiro lugar
gozar deste mundo, fugindo do sofrimento que purifica e do dever nos momentos
duros da vida.
(2) - Quem perde sua vida, sacrificando-se
no cumprimento do dever por amor a mim, a salvará.
(3) - Santo Tomás, II, II, q. 147, de
jejunio.
(4) - Santo
Tomás, in Mat., V, 40.
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