Pe.
Garrigou-Lagrange, O.P.,
La
Providence et la Confiance en Dieu
Sempre é de sumo
interesse o tema da caridade, e convém insistir continuamente nele, sobretudo
em nossa época, quando a caridade fraterna é negada por todo gênero de
individualismos, e completamente falseada pelo humanitarismo dos comunistas e
internacionalistas.
O
individualismo põe o olhar somente no bem útil e deleitável do indivíduo, ou,
no máximo, do grupo relativamente reduzido a que pertence o indivíduo. Daí
procede a violência da luta, as vezes entre membros da mesma família, porém
sobretudo entre as classes e os povos. Daí a rivalidade, a inveja, a discórdia,
o ódio, as dissenções mais profundas. O individualismo desconhece o bem comum
em seus diversos graus e insiste quase
exclusivamente nos direitos individuais ou particulares.
Pelo contrário, o humanitarismo dos comunistas e
internacionalistas afirma de tal maneira os direitos da humanidade em geral,
mais ou menos identificada com Deus, de forma panteísta, que desaparecem os
direitos do individuo, da família e dos povos; e, com o pretexto de unidade, de
harmonia e de paz, se prepara uma confusão espantosa e uma desordem sem
precedentes, como vemos na Rússia desde a revolução. Pretender que todas as partes
de um organismo sejam tão perfeitas como a cabeça, ou suprimir esta porque é
mais perfeita que os membros, é destruir o organismo inteiro.
É evidente que a
verdade se encontra entre estes dois erros extremos e acima deles. Colocada a
igual distancia do individualismo e do comunismo, afirma a verdade os direitos
do indivíduo, da família e dos povos, como também as exigências do bem comum,
superior a todo bem particular. O conceito justo das coisas salvaguarda o bem
individual mediante a justiça comutativa,
que regula as transações entre os particulares, e mediante a justiça
distributiva, que reparte equitativamente os bens e os cargos; salvaguarda
também o bem comum por meio da justiça legal, que dita e faz cumprir as leis
justas, e por meio da equidade, que se rege pelo espírito das leis em
circunstancias excepcionais em que a letra fica inaplicável.
Estas quatro espécies
de justiça, admiravelmente assinaladas por Aristóteles e explicadas por Santo
Tomás em seu tratado de Justitia (IIa
– IIae, q. 58, 61, 120), bastam em certo sentido para guardar o
justo meio entre os erros contrários ao individualismo e do comunismo
humanitário. Não é, por certo, bastante conhecida a doutrina de Santo Tomás
sobre a justiça; poderia ser objeto de muito interessantes e úteis trabalhos.
Porém, estas quatro
classes de justiça: comutativa,
distributiva, legal ou social e equitativa, por muito perfeitas que sejam,
mesmo esclarecidas pela fé, nunca poderão chegar à perfeição da caridade ou
amor de Deus e do próximo, cujo objeto formal é incomparavelmente superior.
Examinemos primeiro
qual seja o objeto primário da caridade e qual o secundário. Vejamos em seguida
como há de exercer e como por meio dela se cumpre o plano da Providência.
***
Qual é o objeto
primário e o motivo formal da caridade.
O objeto primário da
caridade está muito acima do bem do indivíduo, da família, da pátria e mesmo da
humanidade. Devemos amar a Deus sobre todas as coisas, mais que a nós mesmos,
por ser infinitamente melhor que nós. É o primeiro mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com toda a tua mente” (Lc.,
10, 27).
Este preceito supremo,
ao que estão subordinados todos os demais preceitos e conselhos, é de ordem
sobrenatural; porém está conforme também com a inclinação natural, mais ainda,
com a inclinação primordial de nossa natureza e, em certo modo, de toda a
natureza criada.
Verdade é que existe e
nós o instinto de conservação individual, como também o de conservação da
espécie, e uma inclinação que nos leva a defender nossa família e nossa pátria,
e a amar também nossos semelhantes; porém, é todavia mais profunda, como
demonstra Santo Tomás (Ia, q. 60, a. 5), a inclinação de nossa
natureza a amar a Deus, que nos criou, mas que a nós mesmos. – Por quê? Porque
o que de sua mesma natureza pertence a outro, como a parte ao todo, a mão ao
corpo, está naturalmente inclinado a amar esse outro mais que a si mesmo. Por
isto se sacrifica a mão de um modo espontâneo para salvar o corpo. Agora bem,
toda criatura, em tudo quanto é, depende necessariamente de Deus, criador e
conservador de nosso ser; e por conseguinte, toda criatura está naturalmente
inclinada a amar o Criador mais que a si mesma.
E assim, a lei de
coesão do universo e buscando o bem do mesmo, que é a manifestação da bondade
de Deus; e a galinha, como disse Nosso Senhor, recolhe seus pintinhos debaixo
das asas, para defendê-los do gavião, e sacrifica, si é preciso, a própria vida
pelo bem da espécie, que faz parte do bem universal.
Esta inclinação
primordial da natureza está no homem e no anjo iluminada pela luz da
inteligência e nos move de uma maneira mais ou menos consciente a amar a Deus,
autor de nossa natureza, mais que a nós mesmos.
É indubitável que o
pecado original debilitou essa inclinação natural, porém, apesar disso,
subsiste em nós a vontade, faculdade intelectual imperecedoura.
Esta mesma inclinação
natural foi elevada pela virtude sobrenatural ou infusa da caridade, que é de
ordem infinitamente superior à natureza humana e mesmo a angélica. À luz da fé
infusa, a caridade nos faz amar a Deus mais que a nós mesmos e sobre todas as
coisas, não só como autor de nossa natureza, senão também como autor da graça;
nos faz amar a Deus “que primeiro amou a
nós” dando-nos a existência, a vida, a inteligência, e o que é maior, a
graça santificante, princípio de vida eterna, gérmen cuja plena floração será a
visão imediata da essência divina e do amor sobrenatural e santíssimo que não
poderá destruir nem diminuir.
Tal
é o objeto primário da caridade: Deus, que nos amou primeiro e nos fez
partícipes de sua vida íntima. Donde a caridade é a amizade entre Deus e o
homem.
O
motivo formal de nossa caridade é ser Deus infinitamente bom em si mesmo,
infinitamente melhor que nós mesmos e seus dons.
Se não meditamos
continuamente este objeto primeiro e no motivo formal da caridade, não
poderemos entender como sé tenha que amar o objeto secundário.
Realmente
não há duas virtudes de caridade, uma que se refere a Deus e outra que se
refere ao próximo. É uma mesma e única virtude teologal, princípio destes dois
amores essencialmente subordinados.
Nada pode querer a
caridade senão em relação a Deus mesmo, por amor de Deus; como nada pode ver a
vista senão por meio da cor e com relação a ele, nem o ouvido perceber o som e
o que é sonoro. Mas por amor a Deus
devemos amar tudo o que com Ele se relaciona.
***
(Continua...)
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